João Jorge e Jacobina Maurer

João Jorge e Jacobina Maurer

I m A g E m

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O Velho do Espelho

"Por acaso, surpreendo-me no espelho:
quem é esse que me olha e é
tão mais velho do que eu?
Porém, seu rosto...é cada vez menos estranho...
Meu Deus,Meu Deus...Parece meu velho pai -
que já morreu"! (Mario Quintana)

P E S Q U I S A

sexta-feira, 5 de julho de 2013

MARTIN FIERRO: UM POEMA DA DIGNIDADE LATINO-AMERICANA

 E atendam à relação
de um gaúcho perseguido,
que foi bom pai e marido
delicado e diligente;
entretanto muita gente
o considera bandido. 




Martín Fierro: o anti-herói gauchesco da literatura do Prata

 Profa Dra. Lisana Bertussi (UCS) 

 Muito se tem enfatizado a importância de considerar a literatura gauchesca como um produção literária de três pátrias: Brasil (especificamente o Rio Grande do Sul) Argentina e Uruguai). De fato há muita semelhança na cultura desses três países cuja economia é baseada fundamentalmente na atividade pastoril, que gera um tipo regional semelhante e uma literatura regional similar, pois autores como o uruguaio Bartolomé Hidalgo, o argentino José Hernández ou o gaúcho Ramiro Barcelos enfocam um universo comum: o pampa. 

Também já se chamou a atenção para o fator que foi determinante na grande produção e recepção dessa literatura, ou seja, o fato de ela estar muito vinculada a lutas políticas desses países, o que não ocorreu nos EUA que também tem no cawboy um tipo análogo, mas sem uma produção literária regional significativa.  A gauchesca no Rio Grande do Sul, como insistentemente a História e Crítica ressaltaram, teve como ênfase uma visão otimista do universo campeiro, visto como uma espécie de paraíso, habitado pelo herói mitificado em centauro dos pampas e monarca das coxilhas,2 de que temos muitos exemplos desde a literatura oral, passando por poetas do século XIX, como Apolinário Porto Alegre, Bernardo Taveira Júnior ou, mais modernamente, um Jayme Caetano Braun, embora haja exceções, como o próprio Antonio Chimango de Ramiro Barcelos ou a Trilogia do gaúcho a pé de Cyro Martins. 

José Hernández ao configurar seu Martín Fierro opõe-se a essa posição diante da realidade, apresentando uma visão realista e negativa da vida de um campeiro que se constitui em anti-herói, por ser talhado por circunstâncias adversas, que enfraquecem sua força. Ele, que vivia em paz com sua família, é recrutado para as lutas da fronteira, que se traduzem em defender as estâncias de militares ou grandes fazendeiros das invasões indígenas, vivendo de forma miserável e explorado pelos superiores. E quando fugia era perseguido até ser apanhado e levado de volta para a tropa ou para a prisão, se não fosse castigado com a morte. 
E atendam à relação
de um gaúcho perseguido,
que foi bom pai e marido
delicado e diligente;
entretanto muita gente
o considera bandido. (MF p.20)

Martín Fierro que “foi bom pai e marido/ delicado e diligente”, por circunstâncias sociais, é considerado por “muita gente” da sociedade como “bandido”. É essa a configuração do anti-herói, segundo o Dicionário de Teoria da narrativa: 

A peculiaridade do anti-herói decorre de sua configuração psicológica, moral,
social e econômica, normalmente traduzida em termos de desqualificação. Neste
aspecto, o estatuto do anti-herói estabelece-se a partir de uma desmitificação [...]
Apresentado como personagem atravessada por angústias e frustrações o antiherói
concentra em si os estigmas de épocas e sociedades que tendem a
desagregar o indivíduo [...] (REIS/ LOPES, 1988, p.92) 01

E a personagem lembra o tempo passado que, sob seu ponto de vista, romântico opõe-se ao presente infeliz. Observe-se:

Recordo – que maravilha!...
como andava a gauchada
sempre alegre, bem montada
e disposta para a lida;
mas, hoje em dia, - que vida!...
anda toda aporreada. (MF p.24)


Aqui pode-se observar que o anti-herói adquire foros de coletivo, pois faz parte da “gauchada” que “andava sempre alegre, bem montada”. É significativo que o bem estar do gaúcho esteja relacionado com a posse do cavalo, elemento importante na configuração do gaúcho feliz, no Prata, e do mito do centauro dos pampas, fruto do forte vínculo com esse animal, tão decantado no Rio Grande do Sul.

Eu não tinha nem camisa,
ou coisa que se pareça;
só p’ra isca a sorte avessa
me dava trapos enfim...
Nada se iguala ao fortim
para que um homem padeça. (MF p.38)

Por mais azar até o mouro
escapou da minha mão;
não sou lerdo... mas irmão,
veio o comandante um dia,
dizendo-me que o queria
“p’ra ensiná-lo a comer grão” (MF.p.38)

Sem “camisa” vestido com “trapos” tendo perdido o “mouro” para o comandante que, ironicamente dito, apenas “o queria/ ’p’ra ensinar a comer grão’”, o gaúcho expressa sua “má sorte” e “infortúnio” reforçada por estar “a pé”, o que nos lembra 'O tatu'  do cancioneiro popular “de freio na mão e a pé” e a Trilogia do gaúcho a pé deCyro Martins, marcos da desmitificação do mito gauchesco no Rio Grande do Sul.

Na literatura gauchesca de nosso Estado, um tipo muito elogiado, na poesia e prosa, é o gaúcho livre, o gaudério, ou vago, o homem que, não criando raízes em lugar algum, vive de pequenos serviços temporários nas lides com o gado nas fazendas.  Em Hernández, pelo contrário, ele é visto como um degradado despido de qualquer dignidade. E é assim que Martín Fierro se vê.

 01  REIS, Carlos e LOPES, Ana M. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo:
Ática, 1988. [Série Fundamentos, n.29]



 Profa Dra. Lisana Bertussi (UCS) 
 Professora do Departamento de Letras e do Mestrado em Letras, 
cultura, regionalidade da Universidade de Caxias do Sul em

 
Martin Fierro II


Martín Fierro é um poema épico redigido conforme o falar do gaúcho divido em duas partes: "O Gaúcho Martín Fierro" escrito em 1872 e, "A Volta de Martín Fierro" de 1879.


O livro de José Hernández é um protesto contra as tendências europeizantes do presidente Domingo Faustino Sarmiento (1868-1874). Sarmiento acreditava que para a "civilização" imperar na Argentina era necessário derrotar o gaúcho e, importar a "sociedade", a "cultura" e imigrantes da Europa para povoar o país. Contra isso José Hernández rebelou-se. O manifesto do seu desagrado - o contrapondo ao "Facundo" de Sarmiento - foi "O gaúcho Martin Fierro".


Exilado em 1879, Hernández escreverá Martin Fierro em Santana do Livramento, no sul do Brasil. Em “Martin Fierro” a figura gaúcho difere do paradigma do “monarca dos pampas” que o movimento tradicionalista oficial propagandeia a décadas. Na obra de Hernández temos o gaúcho como o pobre dos campos, como o perseguido:


"o gaúcho anda sempre fugindo.
Sempre pobre e perseguido:
não tem cova nem ninho
como se fosse um maldito;
porque ser gaúcho...
o ser gaúcho é um delito.


"No Manual das Zonzeras Argentinas - um livro genial na desmistificação do pensar "colonizado" - Arturo Jauretche dirá que da identificação da "civilização" com a Europa e da "barbárie" com a América Latina surge uma racionalidade de "negação da América e afirmação a Europa". Essa é a matriz de uma mentalidade "colonizada", sempre pronta a copiar o que ontem vinha da Europa e o que hoje vem dos Estados Unidos da América; uma razão que ao voltar as costas à seu povo e sua cultura subordina-se as razões e aos interesses de outros: as razões e aos interesses do Norte.
A seguir, os primeiros versos do Martín Fierro:


1 Aquí me pongo a cantar
Al compás de la vigüela,
Que el hombre que lo desvela
Una pena extraordinaria
Como la ave solitaria
Con el cantar se consuela.



2 Pido a los Santos del Cielo
Que ayuden mi pensamiento;
Les pido en este momento
Que voy a cantar mi historia
Me refresquen la memoria
Y aclaren mi entendimiento.



3 Vengan Santos milagrosos,
Vengan todos en mi ayuda,
Que la lengua se me añuda
Y se me turba la vista;
Pido a Dios que me asista
En una ocasión tan ruda.



4 Yo he visto muchos cantores,
Con famas bien obtenidas,
Y que después de adquiridas
No las quieren sustentar:
Parece que sin largar
Se cansaron en partidas.



5 Mas ande otro criollo pasa
Martín fierro ha de pasar,
Nada la hace recular
Ni las fantasmas lo espantan;
Y dende que todos cantan
Yo también quiero cantar.

Link com o contéudo integral de Martin Fierro:

Créditos da postagem original a Lucio Costa no blog: http://bolichoycultura.blogspot.com/


PS -  (postado originalmente em setembro de 2010 e atualizado em julho de 2013)

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