João Jorge e Jacobina Maurer

João Jorge e Jacobina Maurer

I m A g E m

I m A g E m
O Velho do Espelho

"Por acaso, surpreendo-me no espelho:
quem é esse que me olha e é
tão mais velho do que eu?
Porém, seu rosto...é cada vez menos estranho...
Meu Deus,Meu Deus...Parece meu velho pai -
que já morreu"! (Mario Quintana)

P E S Q U I S A

sábado, 19 de agosto de 2017

Para compreender a Sociedade do Espetáculo

Uma estudiosa de Guy Debord propõe pistas para acessar o pensamento do filósofo. Sua obra central, que completa 50 anos, vasculhou as lógicas de dominação do capitalismo contemporâneo 
                                                                                                                         Por Iná Camargo Costa 

 Arte política 
Logo depois de publicar seu livro A sociedade do espetáculo (1967), Guy Debord fez um filme com o mesmo nome (1973) no qual retoma todos os procedimentos do cinema de agitprop desenvolvido na Rússia revolucionária por gente como Eisenstein, ao mesmo tempo em que faz avançar tanto as propostas dos seus antecessores quanto as que enunciou no livro, que foi pensado entre outras coisas como uma intervenção no debate estético-político francês. 

Cena de “A Sociedade do Espetáculo”, filme de 1973. O livro de Debord foi publicado sete anos antes

Disponível no You Tube com legendas em português, este filme merece ser visto e revisto, pois a totalidade dos seus argumentos está ali exposta, bem como a resposta que Guy Debord queria dar no plano da política e da arte. No plano da política, trata-se de resgatar o programa da democratização radical do modo de produção e, por consequência, de revolucionar por completo o modo de vida sob o capitalismo (ainda em aliança com a fraude chamada socialismo nos anos de 1960-70). 
O filme já seria uma expressão legítima deste processo de luta, na medida em que identifica e denuncia processos, agentes, modos de expressão artístico-publicitários, etc., e já é uma proposta prática e artística do que fazer (para citar Lenin, uma das referências de Debord). A começar pela publicidade, os processos fundamentais da nossa sociedade do espetáculo continuam os mesmos, mas seus agentes já foram substituídos por outros menos toscos, de modo que uma atualização do filme (não do livro) poderia reaproveitar sua estrutura básica (no sentido do détournement, como ele mesmo fez com os filmes então apreciados espetacularmente pelos cinéfilos franceses) e substituir as cenas daquele presente francês por cenas do nosso presente (2017). Desconfio que os resultados seriam igualmente impressionantes. 
Um filme assim diria muito mais do que a quase totalidade dos discursos supostamente críticos dos processos a que temos assistido espetacularmente nos anos que se seguiram às manifestações de junho de 2013. O texto que segue foi preparado para uma exposição do tema aos integrantes da Brava Companhia de teatro em 2009 (reproduzida a seguir) e acolheu de modo radical a proposição debordiana do détournement. Isto é: salvo pela edição, tudo o que será lido está no livro A sociedade do espetáculo. Aqui a sua função é contribuir para apropriações do pensamento debordiano que sejam mais produtivas do que até agora tem acontecido, pelo menos no Brasil, em que se observa o lamentável fenômeno da apropriação espetacular de um pensamento que se pretende crítico do espetáculo.

Descrição do fenômeno histórico
https://www.youtube.com/watch?v=Y-JwqQowAdk

Espetáculo é ao mesmo tempo uma relação social e a relação interpessoal mediada por imagens. É o modelo atual da vida que domina na sociedade. É a justificação total das condições e dos objetivos do sistema capitalista. O espetáculo é o discurso ininterrupto que a ordem atual faz a respeito de si mesma. É um monólogo laudatório. Começa no pseudo-diálogo da vida cotidiana e familiar, desenvolve-se na vida econômica, é cultivado metodicamente na universidade e constitui o oxigênio dos meios de comunicação. Como elemento constitutivo do espetáculo, a publicidade é mentira metódica. Cada nova mentira da publicidade é também a confissão da mentira anterior. Cada queda de uma figura do poder totalitário revela a comunidade ilusória que a aprovava por unanimidade. O espetáculo é absolutamente dogmático e, ao mesmo tempo, não pode chegar a nenhum dogma sólido. 

Gênese 
 A sociedade do espetáculo deita raízes em todas as formas sociais que a precederam. Mas a ordem das coisas que está no âmago da dominação do espetáculo moderno nasceu no mesmo momento histórico em que a representação do proletariado (suas organizações) passou a opor-se radicalmente à classe: o primeiro passo deu-se quando o bolchevismo triunfou na Rússia e a social-democracia lutou vitoriosamente pela velha ordem. O segundo passo foi dado pelo stalinismo que instrumentalizou a Terceira Internacional como força de apoio da sua diplomacia para sabotar todos movimentos revolucionários e apoiar governos burgueses dos quais esperava retribuição em seus negócios mundiais. O fascismo – passo seguinte –, por mais que seja adepto da mais conservadora ideologia burguesa, em si mesmo não é fundamentalmente ideológico. Ele é arcaizante em seu recurso ao mito para organizar a comunidade definida por pseudo-valores arcaicos como raça, sangue e chefe. O fascismo é arcaísmo tecnicamente equipado e constitui um dos fatores do espetáculo moderno, a começar pelo papel essencial que desempenhou na destruição do antigo movimento operário (previamente desarmado pela social-democracia e pelo stalinismo). O fim da União Soviética e seus satélites (ocorrido no ínicio dos anos de 1990), a aliança da mistificação burocrática, significa que a burguesia perdeu o adversário que objetivamente a sustentava unificando de modo ilusório a negação da ordem presente. O proletariado não foi suprimido, como afirmam os intelectuais a serviço da sociedade do espetáculo. Ao contrário, ele se amplia com a extinção do campesinato e com a extensão da lógica do trabalho assalariado para os “serviços” e as profissões intelectuais – entre as quais a de artista. E o trabalho intelectual assalariado tende a seguir a lei da produção industrial da decadência, na qual o lucro do empresário depende da rapidez da execução e da má qualidade do material utilizado.

Resultado de imagem para guy debord
Guy Debord
Crítica 
A crítica à sociedade do espetáculo só terá consequência prática se apontar para a organização revolucionária. E tem que ser globalmente formulada contra todos os aspectos da vida social, que estão sob o encanto do fetiche da mercadoria. A cultura é a esfera geral do conhecimento e das representações do vivido. Numa sociedade dividida em classes, ela é o poder de generalização que existe em separado, como divisão intelectual do trabalho e trabalho intelectual da divisão. Mas a cultura é também o lugar da busca da unidade perdida. Nesta busca, a cultura como esfera separada é obrigada a negar a si mesma, produzindo-se como intervenção crítica da economia política. 
A crítica espetacular do espetáculo, funcional a ele, é um empreendimento da sociologia, que estuda a separação recorrendo às ferramentas conceituais e materiais produzidas pela separação. A apologia do espetáculo, ou publicidade, por sua vez, constitui um pensamento do não pensamento, um esquecimento explícito da prática histórica. O falso desespero da crítica espetacular e o falso otimismo da pura publicidade do sistema são idênticos enquanto pensamento submisso. Para destruir a sociedade do espetáculo é preciso pôr em ação uma força prática. A teoria crítica do espetáculo só se torna verdadeira ao unificar-se à corrente prática da negação da sociedade de classes. E esta negação, a retomada da luta de classes revolucionária, se tornará consciente de si ao desenvolver a crítica do espetáculo, que é a teoria das suas condições reais, as condições práticas da opressão atual. O espetáculo é a ideologia por excelência, porque expõe e manifesta em sua plenitude a essência de todo o sistema ideológico: o empobrecimento, a subordinação e a negação da vida real. O espírito do espetáculo é completamente despótico. Nunca a censura foi tão perfeita. Esta sociedade já não aceita ser criticada. O discurso espetacular silencia tudo o que é propriamente secreto e tudo o que não lhe convém. A ignorância dos espectadores nasce daquilo que o espetáculo ensina. O discurso do espetáculo não deixa espaço para resposta. A lógica só se forma socialmente pelo diálogo; não é fácil e ninguém quer ensiná-la aos espectadores. Por outro lado, nenhum drogado estuda lógica porque já não precisa dela e já não tem esta possibilidade. 
A preguiça do espectador é a mesma de qualquer intelectual, do especialista formado às pressas, que vai sempre tentar esconder os estreitos limites dos seus conhecimentos através da repetição dogmática de algum argumento de autoridade sem qualquer lógica. O discurso da sociedade do espetáculo é falacioso, enganador, impostor, sedutor, insidioso e capcioso. A maior exigência da máfia, onde quer que esteja, é estabelecer que ela não existe, ou que foi vítima de calúnias. Este é apenas o seu primeiro ponto de semelhança com o capitalismo e a sociedade do espetáculo.

segunda-feira, 17 de julho de 2017

Historiadora pesquisa o trabalho de médico brasileiro que articulou psiquiatria com segurança nacional

Segundo Luiza das Neves Gomes, doutoranda em História Social pela UFRJ, as ideias de Antonio Carlos Pacheco e Silva ajudaram a legitimar diversas ideias que caracterizaram o regime militar. 
                                         
Por Bruno Leal | Agência Café História 27 de junho de 2017
Disponível em 

 “Ao médico, é óbvio, cabe papel de grande relevo nesse combate e o dever de colaborar, com o mais ardoroso espírito cívico e patriótico, em tudo quanto concorra para a segurança nacional”. Assim escreveu o médico-psiquiatra Antonio Carlos Pacheco e Silva (1898-1988) em seu livro “Hippies, drogas, sexo, poluição”, publicado no Brasil em 1974 pela editora Martins Fontes. A trajetória e o trabalho de Pacheco e Silva, defensor da psiquiatria como compreensão das “doenças morais” que ameaçavam a segurança nacional no século XX, são os objetos de pesquisa de Luiza das Neves Gomes, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ (PPGHIS). 

Luiza Gomes - PPGHIS/UFRJ
Foto: Luiza Gomes - Luiza Gomes é doutoranda no PPGHIS/UFRJ. Foto: Bruno Leal. 
Em conversa com o Café História, Gomes explicou que sua pesquisa busca entender como os trabalhos de Pacheco e Silva e sua participação em diversos espaços sociais e políticos relacionam-se com os debates científicos ligados à higiene mental nas discussões que permeavam a Doutrina de Segurança Nacional (DSN) e a Doutrina de Guerra Revolucionária (DGR), ambas elaboradas nos anos 1950 e 1960. Luiza entende Pacheco e Silva como um “intelectual orgânico”, conforme categoria usada por Rene Armand Dreifuss “1964: a conquista do estado” (1981). 

Dreifuss afirma que nos anos 1960 no Brasil uma elite intelectual lutava pelos interesses do capital multinacional. Como consequência disso, acabou se formando um conjunto de agentes sociopolíticos e um aparelho civil e militar modernizante. Esses agentes, os tecno-empresários e os militares, muitos deles membros dos quadros da ESG, eram caracterizados por Dreifuss como os intelectuais orgânicos do novo bloco de poder em formação. Esses intelectuais serão os principais atores políticos para implementação do regime militar. Dreifuss, é importante dizer, se apropria do trabalho de Antonio Gramsci, para quem o intelectual orgânico é todo intelectual que, diferentemente do “intelectual tradicional”, é vinculado a um projeto de classe ou fração de classe – explicou Gomes.  

Um médico-psiquiatra “civil militarizado” 
Pacheco e Silva foi um dos pioneiros da psiquiatria militar brasileira. Formado em Medicina pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, produziu diversos estudos sobre eugenia e higiene mental, muitos dos quais buscavam demonstrar como o atraso social, o declínio produtivo e o comunismo eram consequências diretas e indiretas de doenças mentais e morais. Nos anos 1960, foi um dos principais difusores da DSN e da DGR no meio civil, além de defensor do regime militar instalado no país em 1964. Ao longo de sua carreira, escreveu livros, realizou palestras e conferências. Foi presidente da Liga Paulista de Higiene Mental (1926), Deputado Constituinte (1933-1934), professor da Universidade de São Paulo (1935-1967), membro da Escola Superior de Guerra (anos 1950 e 1960), vice-presidente do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e membro da comissão executiva da Aliança Renovadora Nacional (ARENA), além de membro de outros espaços que o ajudaram a legitimar e difundir suas ideias. 

Pensamento conservador e ditadura militar
A relação de Pacheco e Silva com o meio militar era bastante considerável, não só no âmbito da ESG, da qual foi aluno e conferencista, mas também na Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG), no jornal Notícia do Exército e no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva do Exército (CPOR), onde circulavam publicações suas sobre Segurança Nacional. Para Gomes, Pacheco e Silva foi um “civil militarizado”.  Segundo a historiadora, o pensamento de Pacheco e Silva foi bastante pautado pelo conservadorismo. “Entre as décadas de 1920 e 1940”, ela explica, “seus trabalhos apontavam uma íntima relação entre o mundo laboral e a higiene mental”. Para o médico-psiquiatra, o rendimento de uma indústria se equacionava através do estado de saúde física e mental de seus trabalhadores, haja vista que um indivíduo corroído pelas “verminoses sociais” não poderia se tornar produtivo. 

Outro tema bastante presente em seus estudos nessa época era o “aperfeiçoamento da raça”, sempre pautado pela eugenia. – Pude verificar como Pacheco e Silva entendia os problemas sociais da época, exercendo juízos de valor e retratando determinados grupos enquanto entidades mórbidas, como judeus, muçulmanos, japoneses, ciganos e hippies. Ele via estes grupos como uma ameaça à ‘homogeneidade da população’ devido às suas características culturais e religiosas, que ele julgava perniciosas para a “raça em formação”. Na década de 1960, Pacheco e Silva se destacou quanto aos alertas que fazia à sociedade sobre o avanço do comunismo e da propaganda comunista no Brasil, cabendo, segundo ele, às elites do país cuidar das condições materiais e educacionais da nação para evitar a adesão às ideias revolucionárias. 

Gomes cita o caso de uma conferência proferida na ESG, em 1961, onde Pacheco e Silva mostrou grande preocupação com as “personalidades psicóticas” e “desajustadas” que estariam suscetíveis à influência dos comunistas e das táticas soviéticas. Essas ideias circularam em instituições como a USP, a FIESP, o Fórum Roberto Simonsen, o IPES, o Wolrd Anti-Communist League e diversos veículos de imprensa, como os jornais Folha de S. Paulo e O Globo. – Muitos dos valores pregados por Pacheco e Silva ganharam espaço no projeto da grande burguesia brasileira e multi­nacional que visava garantir seus investimentos pautados em um modelo de desenvolvimento modernizante. Valores que perpassavam pela a preservação da família, da escola, da harmonia no trabalho, da obediência às normas políticas e da religião cristã – disse a historiadora. 

 Fontes e descobertas 
Gomes, que é orientada pelo historiador Renato Lemos, está trabalhando com documentos encontrados na Escola Superior de Guerra (ESG), na Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG), no jornal Noticiário do Exército e no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva do Exército (CPOR). A maior parte de suas fontes, no entanto, encontra-se no Museu Histórico Carlos da Silva Lacaz, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. No fundo “Pacheco e Silva”, Gomes debruça-se sobre correspondências, fotografias, atas, recortes de jornais, laudos periciais, plantas arquitetônicas, regimentos, relatórios, artigos especializados, separatas de sua produção e originais, entre os quais manuscritos, relatórios e textos não publicados. Embora a pesquisa ainda esteja em seu segundo ano, a historiadora já encontrou diversos documentos interessantes. É o caso de um livro sobre psiquiatria militar escrito por Pacheco e Silva logo depois da entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Neste livro, financiado pelo Fundo Universitário de Pesquisa para Defesa Nacional, o médico discorre sobre os temas do recrutamento e das neuroses de guerra. Além disso, Gomes também destaca as atas de reunião da Liga Anticomunista Internacional, da qual Pacheco e Silva foi presidente na década de 1970, e um documento manuscrito de Pacheco e Silva idealizando a Associação dos Revolucionários de 64 e sua ata de Fundação e o Estatuto, que tinha como objetivo manter vivos os ideais da “Revolução Brasileira”.

domingo, 16 de julho de 2017

Antidepressivos, alívio ou dependência?



Woman taking prozac.


Um grande estudioso brasileiro de saúde mental apresenta as obras e pesquisas internacionais que estão contestando a eficácia de alguns dos medicamentos mais lucrativos da indústria farmacêutica

Paulo Amarante, entrevistado por Eliane Bardanachvili, no site do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz

Não se pode medir depressão como se mede glicemia, anemia ou hipertensão. Por se tratar de problema para o qual não há um índice padrão de detecção, a depressão tornou-se um conceito maleável, posto a serviço dos interesses da indústria farmacêutica, para incrementar a venda de medicamentos. “Elegeu-se a depressão como doença a ser cada vez mais alargada, para abarcar situações da vida, como conflitos, desgosto, desemprego, separação, luto, e formatar como doença”, analisa nesta entrevista ao blog do CEE-Fiocruz o sanitarista Paulo Amarante, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Laps/Ensp/Fiocruz) e presidente honoris causa da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme).
Paulo alerta quanto aos malefícios das drogas prescritas, em especial os antidepressivos, que podem ser mais prejudiciais do que aquilo que buscam combater. “Começou-se a observar que esses medicamentos geram dependência e que sua suspensão e retirada é tão difícil quanto a de uma droga ilícita ou do álcool. E praticamente não há serviço especializado no mundo nesse tipo de desintoxicação”, aponta.
170710-Epidemia
Os laboratórios farmacêuticos, no entanto, denuncia Paulo, encomendam e financiam pesquisas que patologizem o comportamento das pessoas diante de dificuldades cotidianas. Ele cita, entre as investigações realizadas nesse sentido, a do jornalista americano Robert Whitaker, vencedor em 2010 do Investigative Reporters and Editors Book Award, pelo livro Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. O livro foi lançado no Brasil em 3/7/2017, pela Editora Fiocruz.

Co-editor, com o pesquisador Fernando Freitas, do site Mad in Brasil, versão brasileira do site Mad in America, para integrar a comunidade de língua portuguesa à rede internacional, ampliando o diálogo voltado à construção de um novo paradigma de assistência psiquiátrica, Paulo também está concluindo um novo livro, Lugares da memória: causos, contos e crônicas, sobre loucos e loucuras. O livro reunirá relatos de situações que ele recolheu ao longo de sua trajetória e terá prefácio do antropólogo italiano Massimo Canevatti e Eduardo Torre.
O tema dos medicamentos prescritos será discutido em seminário internacional, a ser realizado pelo Laps, com apoio do CEE-Fiocruz, nos dias 30 e 31/10 e 1º/11/2017, no auditório da Ensp. Robert Whitaker está entre os nomes já confirmados, ao lado de Lisa Cosgrove, professora de Psicologia Clínica da Universidade de Massachussets-Boston, co-autora com o jornalista do livro Psiquiatria sob influência: corrupção institucional, danos sociais e proposições para a reforma, e Jaakko Seikkula, da Finlândia, à frente da experiência do Diálogo Aberto (Open Dialogue), abordagem que reduziu os diagnósticos de esquizofrenia no país. “A vida não é uma norma. Cada vida é muito pessoal”, observa Paulo. “O normal não é o estado de bem estar eterno, permanente, ideal. O normal é a capacidade de reação às adversidades”.
Leia a seguir a íntegra da entrevista.
De que forma as drogas prescritas são um problema de saúde pública, e como está esse entendimento por parte da sociedade?
A questão das drogas prescritas tem sido levantada há alguns anos. Tinha-se a concepção de que o uso das drogas psiquiátricas como tratamento para os transtornos mentais era um grande avanço da medicina, da bioquímica, da indústria farmacêutica. Isso vem desde os primeiros tratamentos, logo após a Segunda Guerra Mundial, com o primeiro antipsicótico, a clorpromazina. De lá para cá, vieram sendo produzidos antipsicóticos de segunda e terceira gerações, antidepressivos etc. A ideia de avanço estava no imaginário dos profissionais. Isso, no entanto, passou a ser duramente questionado por psiquiatras que começaram a ver que não eram só as drogas psiquiátricas que possibilitavam uma ressocialização, como argumentava a indústria farmacêutica. A superação do modelo manicomial, da prática asilar, com a adoção de outras práticas de participação social, coletivização, resgatando os sujeitos, sem submetê-los a constrangimentos, segregação e exclusão, surtia efeito muito importante. Uma das marcas da ciência moderna é romper com essa explicação simplista de causa efeito, e, nesse caso, de que a causa do transtorno é uma alteração bioquímica. O homem é um ser complexo, e as alterações bioquímicas não seriam causa, nem necessariamente efeito. É algo simultâneo; o homem pensa a partir de processos simbólicos e neuroquímicos ao mesmo tempo. A teoria do distúrbio neuroquímico vem sendo criticada desde a década de 1970, e só não cai devido a um forte interesse mercadológico. No caso dos antidepressivos, principalmente, pesquisas muito sérias mostram que eles têm efeito igual ou inferior ao placebo, à psicoterapia ou a outras abordagens não científicas, como as religiosas. Há ainda os grupos comunitários que se organizam para dar suporte, os amigos…
Que pesquisas vêm sendo feitas nesse sentido?
No âmbito da própria medicina, temos o Peter Gotzsche [ver aquiaqui], um dos fundadores da Biblioteca Cochrane, que reúne pesquisas baseadas em evidências, e Joanna Moncrieff, da University College London, uma das fundadoras da Rede de Psiquiatria Crítica [ver aqui]. Há também as pesquisas realizadas por formadores de opinião, como o jornalista Robert Whitaker, que ganhou o prêmio de jornalismo investigativo, em 2010, com o livro Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental, e a professora Lisa Cosgrove, da Universidade de Massachussets-Boston. A eficácia dos medicamentos passou a ser questionada, mostrando-se que podem ser auxiliares, paliativos, opcionais em alguma situação, mas não permanentemente, não exclusivamente. Mais recentemente, começou-se a levantar, ainda, que os antidepressivos causam dependência química, levando a uma síndrome de abstinência quando retirados, confundida com recidiva da depressão. Sem o medicamento, a pessoa volta a ter um quadro depressivo, como se fosse um retrocesso. Como, ao receber o antidepressivo novamente, ela melhora, essa melhora é associada ao medicamento, como se fosse a mesma coisa que uma infecção, que pode voltar se o antibiótico for suspenso. Na verdade, o que há é uma situação de abstinência.
Essas questões foram trazidas à tona pela OMS, que definiu a depressão como tema de campanha pelo Dia Mundial da Saúde de 2017, em abril…A OMS chamou atenção para o uso indiscriminado de antidepressivos, sua suspensão e retirada, tão difícil quanto a de uma droga ilícita ou do álcool. As pessoas não podem parar de imediato; têm sintomas de abstinência, como insônia, irritabilidade, palpitações, um mal estar por vezes insuportável. E não há serviço especializado no mundo em desintoxicação de antidepressivos; não há técnicas, estudos para lidar com isso, porque durante muito tempo a psiquiatria negou que esses medicamentos causariam síndrome de abstinência nesse nível. A OMS agora reconheceu pela primeira vez em dois relatórios importantes que os antidepressivos causam dependência e que seu uso da forma como se dá no mundo inteiro é um problema maior que a depressão em si. É como se disséssemos que o uso de antibiótico causa mais problemas que a infecção.
O problema das drogas prescritas representa, então, mais um embate entre saúde e mercado…É sempre a política de mercado versus a política de saúde. O trabalho de Robert Whitaker mostra como a indústria farmacêutica e a classe psiquiátrica estão mancomunadas para produzir, com pesquisas, uma elasticidade no conceito de depressão de forma a abarcar situações da vida cotidiana como conflitos, desemprego, desgosto, separação, luto. Essas situações começaram a ser formatadas como depressão. De fato, é possível moldar um comportamento. Como o ser humano é muito sugestionável, se dissermos que o que ele tem é depressão, ele passa a ter. Se a mídia mostra depoimentos de pessoas importantes  que dizem “fui depressivo”, “tenho TOC”, “tenho pânico”, isso causa um efeito…
O que é depressão, afinal? Ela existe como doença?
Não temos um critério definitivo. Não se pode medir depressão como se mede glicemia, anemia ou hipertensão, não há um índice padrão ou um índice médio permanente. Trata-se de um conceito, e, exatamente por ser tão maleável, tão subjetivo, tornou-se propício a que se elegesse a depressão como a doença a ser cada vez mais alargada. Pânico, obsessão-compulsão, transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH)… No caso dessa última, os pais são levados a mudar seu olhar para ver na criança não alguém rebelde, em crescimento, mas alguém com uma patologia. Problemas cotidianos, escola fracassada – não apenas a escola pública brasileira, mas o modelo de ensino, sua proposta já superada –, pobreza, falta de recursos, baixos salários, tudo contribui para uma piora do quadro. Há também as situações de crise evolutivas, como entrada na terceira idade, iniciação na vida sexual, incapacidade de realização de ato sexual, saída da primeira infância para a puberdade, entrada na vida adulta, crises de identidade que podem vir acompanhadas de uma certa situação depressiva. E o comportamento das pessoas diante das dificuldades acaba sendo patologizado. O livro de Allen Frances, Salvando o normal [Saving the normal – ver aqui], é uma crítica a essa ampliação do conceito de anormalidade.
O que é importante entendermos sobre normalidade e anormalidade?A vida não é uma norma, há diferentes padrões, cada vida é muito pessoal. Podemos inventar a doença, ampliar o conceito de doença e patologizar todo o sofrimento, ou podemos inventar e ampliar o conceito de saúde. O normal não é o estado de bem estar eterno, permanente, ideal. O normal é a capacidade de reação às adversidades – pois elas existem – criando-se normas. A normatividade é a capacidade do ser vivo de criar normas; elas não existem de antemão. A saúde está em lidar com a situação de doença. O câncer é normal na vida; se há um corte no braço, o organismo encontra um caminho para o sangue passar, ou cria a cicatriz para organizar a pele, assim como cria a febre para reagir à infecção. Essa capacidade de criação de normas é muito pessoal. Há princípios gerais, mas nunca são universais e idênticos. O título do livro de Allen Frances, Saving de normal, que da tradução em inglês seria Salvando o normal, traz um conceito interessante: salvar o normal é admitir que existe o normal e que nem tudo pode ser considerando patológico. A editora no Brasil, no entanto, traduziu o título para Voltando ao normal, o que muda totalmente o sentido, pois parte-se do princípio de que há um padrão a ser buscado, ao qual retornar. Não estamos falando de padrão, mas de normatividade, da capacidade de criação de normas. Há muitos autores no mundo trabalhando nessa questão.
Existe um momento ou situação em que um cuidado especial torna-se necessário?Existem alguns princípios, como estado de tristeza profunda inexplicável, perda de ânimo, com ideias de ruína, autodesvalorização, autodestruição, ideias persecutórias, sem um fato relacionado a isso, sem que haja situação de luto, desemprego, separação, enfim, um disparador. Se uma situação foge à explicação racional, a um entendimento racional, podemos dizer que se trata de depressão. Mesmo isso, no entanto, deve ser relativizado. O DSM 5 [quinta e mais recente edição, de 2013, do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, da Associação Americana de Psiquiatria, que teve a primeira publicação em 1952, e lista categorias e critérios para diagnóstico dos transtornos mentais] diz que em algumas situações o luto a partir de seis meses já deve ser considerado patológico. Esse é um critério absurdo; como se o luto fosse comum em todas as sociedades e culturas. Os bororo fazem um ritual muito diferente do das viúvas espanholas, de origem latina. Minha mãe ficou um ano de preto, quando meu pai faleceu. Não era um processo individual, era cultural também.
A OMS contabiliza cerca de 300 milhões com depressão. Esse número seria superestimado, então?
Nesse caso, estamos falando dessa situação de patologização. Um dos trabalhos do Robert Whitaker, que foi o primeiro a apontar os reais interesses envolvidos nesse processo, mostrou que os laboratórios pagam milhões aos médicos para fazerem pesquisas e fundamentarem as situações de mal estar como patológicas. O sofrimento necessário, humano, é patologizado. Em outro livro seu, Psiquiatria sob influência: corrupção institucional, danos sociais e proposições para a reforma [ver aqui], Robert mostra como os laboratórios vão aos centros de pesquisa, financiam estudos e, ao longo do tempo, compram resultados. Ele conta como conseguiu, no Senado americano, acessar as contas das empresas, para comprovar que um pesquisador  chegou a receber um milhão e duzentos mil dólares em um ano para prestar consultoria a um laboratório, escrever artigos e fazer palestras indicando um medicamento que ele pesquisava daquele mesmo laboratório! Robert mostra por análise de discurso como os artigos eram escritos pelo próprio laboratório, não pelo pesquisador. Marcia Angell, que foi por muitos anos editora do New England Journal of Medicine e tem como um de seus grandes temas o medicamento psiquiátrico, também desmente os laboratórios, neste caso, quando alegam que os medicamentos são caros porque há grande investimento em tecnologia. Quem investe em tecnologia são os serviços públicos, quando  conseguem comprar as patentes dos laboratórios e produzir medicamentos acessíveis à população, ou as empresas privadas de tecnologia individual. Os laboratórios farmacêuticos não investem em tecnologia, investem fundamentalmente em publicidade.
Mas nem todo médico age de má fé ao prescrever esses medicamentos…Os laboratórios têm também estratégias para os médicos em seus consultórios. Uma é levando representantes para apresentação dos medicamentos, com amostras e brindes. Em alguns países, como Estados Unidos e Espanha há um movimento, o No, thank you, ou No, gracias, de médicos que não aceitam os representantes dos laboratórios. Você entra no consultório do médico, e está lá: a agenda é Prozac, a caneta é Prozac, o bloquinho é Prozac, o calendário é Prozac, e ele receita o Prozac, consciente ou inconscientemente. Os laboratórios também oferecem vouchers para jantares nas churrascarias mais caras da cidade, convidam para ir aos congressos no exterior, pagam as passagens, muitas vezes em primeira classe, pagam hospedagem. Nos congressos, dão notebooks de brinde, dão balas e chocolates dentro das embalagens de medicamentos, a caixinha do remédio com amendoim coberto de chocolate dentro. Tenho algumas guardadas. Isso é uma produção simbólica que tem influência na forma de prescrever.
Como romper com tudo isso?
Médicos, pesquisadores, professores teriam que ter um compromisso ético com o paciente e com a sociedade, não com os laboratórios farmacêuticos. É um princípio e deveria haver políticas públicas voltadas a isso. Os laboratórios públicos de pesquisa, ligados a universidades, não poderiam ter financiamento direto da indústria farmacêutica. Já pesquisei, apontei e encaminhei essa reivindicação para o Conselho de Medicina, mas não dá em nada. Esses laboratórios recebem dinheiro da indústria para encomendas específicas. Essa relação deveria ser intermediada pela Capes, pelo CNPq, para onde os laboratórios encaminhariam os recursos, constituindo o Fundo Nacional de Pesquisa. E as universidades concorreriam. Isso não pode ser feito diretamente com a indústria; coloca-se em xeque a autonomia do laboratório público. Presenciei a apresentação de uma pesquisa mostrando aumento assustador do diagnóstico psiquiátrico em São Paulo. Na hora, eu disse ao pesquisador: “Você me assustou, nem vou mais a São Paulo, pois a cidade está muito doente!”. E perguntei: “Você recebe dinheiro diretamente do laboratório farmacêutico?”. A pessoa respondeu que recebia, mas que isso não interferia em sua pesquisa. Eu disse que ela precisaria me provar que não interferia, pois o resultado da pesquisa mostrava que sim. Tanto a indústria farmacêutica, quanto as do tabaco e do álcool deveriam pagar um subsídio, um imposto a centros financiadores que, estes sim, acompanhariam as pesquisas. Aí sim, poderíamos pesquisar se a maconha tem efeito medicinal ou nocivo, se o uso de ritalina é ou não positivo, de forma independente.
Nesse embate entre saúde e mercado, como desmedicalizar sintomas, sem, no entanto, minimizar o sofrimento das pessoas? Afinal, a depressão é tida como doença silenciosa, em que as pessoas que sofrem não são ouvidas ou acolhidas. Somos criados na relação com o outro; nossa identidade está nessa relação. A necessidade de reflexão, introspecção, escuta é imanente, constituinte do sujeito. Essa, no entanto, não é uma questão exclusivamente médico-sanitária, somente do âmbito da saúde. As comunidades ditas primitivas são muito mais sábias nisso, com seus métodos de relações de vizinhança, de cooperação, para fazer frente a essa necessidade. Nós temos essas redes, mas não valorizamos! Na comunidade aqui do lado vemos uma mãe que perdeu um filho contar com uma rede de apoio, de solidariedade das vizinhas que vão dormir com ela, que levam um bolinho… Mas isso não é valorizado. A primeira coisa que se faz quando se perde alguém é tomar um antidepressivo para suportar a crise. O que é preciso, no entanto, é viver aquela crise, e as redes são importantes para isso. Mas como não se dá valor a elas, e o Estado não sabe como propiciar esse acolhimento por meio de uma política pública, e, ainda, como há uma quebra de relações de comunidade promovida pela televisão, pelo medo e pela insegurança, a Igreja acaba ocupando esse espaço. No meu bairro as pessoas sequer se cumprimentam dentro do elevador. Elas não se abrem em sua comunidade, vão para a Igreja fazer uma catarse espiritual ou vão procurar um médico. A questão da depressão é paradigmática, aponta para a ausência do outro, da rede de solidariedade nas grandes cidades. Com as perdas de vínculo, as pessoas ficam sós. O importante seria podermos restabelecer vínculos.

LINK  -   http://outras-palavras.net/outrasmidias/?p=483561   10 de julho de 2017

sábado, 1 de abril de 2017

33. Leve as crianças pela mão


 Leve as crianças pela mão
pelas trilhas do bem,
 nas curvas, na lama,
 pelas pedras soltas,
na estreiteza do caminho, 
sofra, chore, caleje teus pés
e sinta quase vomitar
a alma, de aflição, 
por não saber se estás agindo certo 
mas não solte a mão deles...



No futuro, no fim da trilha
tudo terá passado,
até o presente passado será,
mas nossos filhos terão 
 de passar, de novo,
pela mesma trilha, conduzindo 
pelas mãos outras criaturinhas ...



E mesmo que a neblina baixe  
e a chuva caia
com raios e trovões,
mesmo que a trilha suma 
eles vão saber, eles lembrarão,
vão sentir nossa presença
e o calor de nossa mão,
não irão se perder



e seguirão conduzindo
as próximas gerações
pelas trilhas do bem
por onde sempre passaram
os lutadores sociais e 
 os proletários - os melhores filhos -
da classe trabalhadora...

Gilnei Andrade
31 março 2017

sexta-feira, 31 de março de 2017

O povo yazidi grita por socorro

 A situação do povo yazidi é praticamente desconhecida entre nós. Muito pouco se conhece da sua história e dificilmente ouvimos falar deles em algum noticiário local. Mas não é assim em relação aos governos da Europa que conhecem muito bem a situação. Apesar de todas as advertências, em 2014, vergonhosamente permitiram que o DAESH (Isis Estado Islâmico) massacrasse mais de cinco mil yazidís no distrito de Singal, Curdistão Sul, noroeste do Iraque.




 A região curda (Kri), no Iraque, goza de autonomia sendo governada por Massud Barzani que sucedeu seu pai, Mustafá Barzani, que governou dos anos 60 até a sua morte em 1979. Singal está tecnicamente sob o controle administrativo do governo central do Iraque. A segurança do KRRG (Governo Regional do Kurdistão) e as forças militares estão presentes e ativas dentro do Singal. O ataque de agosto de 2014 foi facilitado porque as forças regulares de Barzan retiraram-se da zona, na noite anterior, levando tudo que puderam principalmente as armas deixando na mais absoluta solidão todos os habitantes do Singal. O DAESH entrou na região e massacrou milhares de yazidis. Outras milhares de mulheres e meninas foram sequestradas e vendidas como escravas sexuais em mercados do Iraque. Ainda hoje o paradeiro de cerca de tres mil mulheres é desconhecido. Outros cinquenta mil yazidís fugiram para as montanhas de Singal numa marcha desesperada em que tiveram de suportar a fome e a desidratação que maltratou principalmente as crianças e os idosos.

Mustafá e Massud Barzani


A única ajuda que receberam veio das Unidades de Auto-Defesa das YPG-J (que estavam lutando contra o DAESH - Estado Islâmico em Rojava / Síria) e das milícias do PKK - Partido dos Trabalhadores do Kurdistão. (O PKK é um movimento que permanece inexplicavelmente na lista de organizações terroristas, á pedido da Turquia e com a anuência dos EUA e da Europa.) A presença do PKK na região é intolerável para o governo de Barzani e seu aliado regional Erdogan, presidente da Turquia. Cento e oitenta mil yazidís foram deslocados forçosamente e encontram-se espalhados em vários centros de refugiados da região. As mulheres que sobreviveram decidiram organizar-se e juntaram-se as forças de Auto-Defesa e criaram suas próprias (YBBSs / YJS) num juramento que não sofreriam outro massacre sem condições de reação e defesa.



Pois justamente nesse momento, exatamente agora, três anos depois a cidade volta a ser atacada mas desta vez não pelo DAESH mas diretamente pelas forças peshmergas de Barzani. Dias depois de Barzani declarar - em linhas gerais - que o povo do Singal devia expulsar o PKK da região para evitar problemas e comprometer-se a não aceitar nenhum tipo de coordenação ou participação nas YBBS/YJS as preparações para o ataque foram iniciadas. A primeira medida que assumiu o governo do KRRG (Governo Regional do Kurdistão) liderado por Barzani foi bloquear a única entrada para a região. Depois, confiscou todos os bens dos que tentavam sair do lugar e antes do ataque direto, impediu a entrada de qualquer tipo de ajuda, desde alimentos e medicamentos até autopeças.



Nesse momento uma grande marcha ocorre na Europa para chamar a atenção internacional sobre o que está acontecendo com os yazidis. Não apenas para que os Governos Europeus condenem os ataques mas para que não permitam que aconteça. A marcha começou na Alemanha e culminará na Bélgica,onde será entregue na sede do Parlamento Europeu um pedido expresso nesses termos. Trata-se de uma apelo desesperado porque ainda há tempo para agir.



A pergunta que o povo yazidi faz ao mundo é se desta vez vão impedir a violência antes que ela ocorra.

FONTE -  Marcha por Singal em                                    https://www.facebook.com/nathaliabenavidesss/media_set?set=a.10209561706903062.1073741985.1339170318&type=3

sábado, 25 de março de 2017

Tornavida tornador


Faz um mês que o furacão passou. Desses que a força da natureza apavora. Ainda assusta a lembrança de vê-lo por dentro. Naquele vazio do meio do tornado. Naqueles segundos antes que os corredores de vento, com suas forças levem tudo para o ar.



Olhar o todo depois que o tornado passou e ir aos poucos, bem aos poucos, percebendo a grandeza dos seus estragos. Um tornado remove o que é estável por baixo da terra. Pelas entranhas. E joga longe. Quebra. Enche de água, que junta com o todo e cobre tudo de lama. E a gente olha longe na vista, até o horizonte e percebe tudo fora do lugar. Carcaças. Lixos. Formas irreconhecíveis do que antes era concreto. Pedaços. Do avesso. Quebrado. Destruído. Desmontado. Desfacelado. E coberto de lama.
E não se sabe por onde começar, olhar o todo dá falta de ar. Como se o ar do mundo pesasse dentro dos pulmões e nosso corpo pendesse pra frente. E se o olhar periférico dá vertigens, o olhar minucioso – aquele que olha os detalhes, que calcula os segundos que o tornado levou para passar, a força dos ventos e a velocidade que atingiu o solo – dá frio. Como se um sopro de gelo diminuísse a velocidade do coração em bombear sangue para o resto do corpo. E as extremidades funcionam sem vitalidade, estranhas ao novo ritmo do metabolismo. 



Então os dias após o tornado começam a passar e é difícil perceber com clareza quando é dia ou noite. A lama fez muita poeira e uma camada grossa cobre o céu. O misto da falta de percepção das horas com a falta de referências estáveis das coisas agora reviradas, faz com que habitemos o limbo. Esse espaço onde não agimos por falta de entendimento do passo seguinte. Observamos. Procuramos por pedaços de carcaças que sejam possíveis reconhecer e aos poucos começamos a reconstruir mentalmente o lugar das coisas, para buscar uma direção.
O processo de reconstrução desse espaço é lento. Quando reconhecemos um objeto, limpamos ele e decidimos se ele volta para o lugar anterior, se ele ganha um novo espaço ou se ele vai fora. Tem objetos que não são mais úteis. Tem objetos quebrados que a gente deixa de lado porque talvez daqui a pouco a gente encontre a parte que falta e tem objetos novos, que o tornado trouxe consigo de outros lugares.


Mas não tentamos limpar toda a lama de uma só vez. Até porque esse pó não sai instantaneamente. A gente começa tirando a camada mais grossa com uma pá. A segunda camada varrendo. A terceira com um pano úmido e ainda assim permanece uma camada fina que a gente percebe algumas horas depois de ter limpado. 
É difícil limpar e organizar as coisas sem ter ideia da dimensão do que a gente tem que organizar. Quão além do horizonte os estragos do furacão chegaram? Foco. Escolhe um objeto. Limpa. Define o que fazer com ele. Foco. Outro objeto. Limpa. Define o que fazer com ele. Nunca o todo. 



O lugar inteiro está cheio de lodo e o processo é lento. Tem algumas pessoas limpando também e tem outras fazendo castelo com a lama. Durante esse um mês vários ventos fortes assustaram. Alguns ventos conseguiram derrubar coisas que já haviam sido ajeitadas e o temor em relação a isso é que um novo furacão se aproxime.
Não sei quantos meses levarão para que a lama vá embora. Até que as coisas se “normalizem” nessa nova forma de organização. De um novo lugar, que não nega a passagem do furacão, pelo contrário, se reconhece mais forte em função dele. E que tem suas raízes rasas, recém replantadas, como esperança de novos frutos. Mas com o entendimento que nem toda planta sobrevive ao replantio. Enquanto isso tem brotos novos, nascidos pelas brechas, depois da tormenta e que já nascem entendendo esse espaço como o mundo real. Como ele é.

                                                                                                   Thais Andrade

quinta-feira, 16 de março de 2017

32. DESAGRAVO AO JORNALISMO PERSEGUIDO

Esse é um manifesto sincero de desagravo e reconhecimento a importância social e política do jornalismo que não pode ser alvo de socos e chutes na bunda ou qualquer outro tipo de perseguição ou agressões por pior que seja sua qualidade e por mais desleais e mentirosos que sejam alguns profissionais que o exercem; 

O jornalismo não pode ser perseguido mesmo que o jornalista esteja de roupa de palhaço, de bailarina ou de mergulhador de aquário porque o jornalista pode até ser um palhaço mas os palhaços não podem ser jornalistas; 

O jornalismo não pode ser ameaçado mesmo que o jornalista seja do tipo que arrasta seus filhos e sobrinhos para verdadeiros "programas de índio de cinema" porque o jornalista é pai e tio mas nem todos pais e tios são jornalistas; 

O jornalismo deve ser respeitado mesmo quando, travestido, torna-se 'jornalismo opinativo' trazendo opiniões que ninguém pediu, versões que ninguém acredita e fatos que ninguém corrobora pois é melhor um jornalista de opiniões reacionárias e contraditórias ativo do que uma sociedade cheia de opiniões sem um jornalista para defende-las ou ataca-las; 

 O jornalismo deve ser resguardado mesmo quando o profissional escreve para um blog que só sua mãe e tias acompanham ou para uma rádio comunitária que ninguém lembra a frequência pois não importa o 'contiúdo' o que importa mesmo é garantir o direito de escrever e falar no caso de surgir alguém que queira ler ou ouvir; 

As administrações públicas (a de Novo Hamburgo também) e os poderes constituídos devem preocupar-se em garantir a integridade física e mental dos jornalistas quer estejam no inicio ou fim de carreira, gozem de boa ou má forma física, vistam-se bem ou de forma andrajosa, portem-se de forma ética e educada ou não, porque maus jornalistas vão passar ou vão empreender noutras áreas mas o verdadeiro jornalismo deve permanecer. Tem que permanecer.