Enciclopédia organizada pela UPF e pela UERGS oferece um inédito panorama histórico do Estado, com abertura a opiniões discordantes e ambição de renovar a historiografia gaúcha. Os livros Colônia, com 368 páginas de textos inéditos e imagens raras, e Império, com 600 páginas igualmente tomadas de pesquisas, mapas, reproduções de pinturas, desenhos e fotos, saíram da gráfica na manhã da última quarta-feira.
Com eles, o Rio Grande do Sul tem aberta sua maior obra histórica, seu panorama histórico mais abrangente - a maior empreitada cooperativa da interpretação de como se formou o Sul do Brasil. Marco editorial, sinalização de um movimento historiográfico, a coleção História Geral do Rio Grande do Sul surge no vazio. Não existia no passado recente nada parecido, com uma envergadura assim.A iniciativa de remediar essa carência partiu do Mestrado em História da Universidade de Passo Fundo e da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul. A série terá cinco tomos: por enquanto Colônia (séculos XVII e XVIII) e Império (século XIX) e, no ano que vem, República 1889-1930, República 1930-1985 e Povos Indígenas.
A equipe que tocou o projeto foi formada em 2003. À frente, na coordenação geral, Tau Golin, professor da UPF, e Nelson Boeira, reitor da UERGS. Mais de cem historiadores foram se integrando ao grupo: professores de departamentos de História de todo o Estado e de fora, especialistas ligados a instituições não-universitárias, pensadores das mais diferentes orientações teóricas, tanto historiadores consagrados quanto jovens pesquisadores mal saídos do doutorado.
Os colaboradores tiveram seus artigos submetidos a um conselho editorial e a diretores específicos de cada volume. O único critério para a seleção dos trabalhos: competência acadêmica e conhecimento do assunto. O todo é uma ação intelectual sem doutrina, ineditamente aberta a discordâncias entre autores, uma formulação que não quer um ponto de vista único sobre o Rio Grande. A enciclopédia não cobre e nem pretende cobrir todos os temas possíveis, mas se ocupa de temas de que a historiografia tradicional não se ocupa, como a produção artística das épocas. Temas clássicos recebem abordagens novas, a partir de documentações até então ignoradas.
Novas versões da nossa História
Colônia e Império, os dois primeiros volumes da coleção História Geral do Rio Grande do Sul, estão cheios de olhares que não se encontram na chamada historiografia tradicional gaúcha. Os novos olhares procuram ver o Rio Grande menos como um lugar fechado e que se basta sozinho e mais como um lugar que diz respeito ao que são o Brasil e a Região Platina.
No artigo Estrutura Agrária e Ocupacional, o capítulo VII de Colônia, Helen Osório, professora da UFRGS, observa que o senso comum cristalizou a paisagem agrária do Rio Grande do Sul no período colonial como um espaço de "vastas campanhas, imensos rebanhos, poucos homens". Uma visão baseada em relatos de viajantes - de portugueses, espanhóis e franceses habituados a outras paisagens. Usar outras fontes históricas, como censos de população e de terras, processos judiciais, inventários de heranças, diz Helen Osório, revela uma sociedade que não se limitava a estancieiros e peões livres e ao domínio da charqueada.
A professora aponta que, ao contrário do que está dito nas Histórias tradicionais, não havia um exclusivismo da pecuária. Na década de 1780, os lavradores suplantavam em número os criadores de gado. Então, 65% dessa população praticava agricultura em maior ou menor grau - "uma proporção ignorada pela historiografia tradicional", como indica Helen Osório. A paisagem agrária da Capitania combinava plantações de alimentos (muito trigo e mandioca) e criação de animais, uma combinação semelhante ao que ocorria na Campanha de Buenos Aires e na Colônia de Sacramento - e que "uma nova historiografia argentina vem revelando".
No artigo Estrutura Agrária e Ocupacional, o capítulo VII de Colônia, Helen Osório, professora da UFRGS, observa que o senso comum cristalizou a paisagem agrária do Rio Grande do Sul no período colonial como um espaço de "vastas campanhas, imensos rebanhos, poucos homens". Uma visão baseada em relatos de viajantes - de portugueses, espanhóis e franceses habituados a outras paisagens. Usar outras fontes históricas, como censos de população e de terras, processos judiciais, inventários de heranças, diz Helen Osório, revela uma sociedade que não se limitava a estancieiros e peões livres e ao domínio da charqueada.
A professora aponta que, ao contrário do que está dito nas Histórias tradicionais, não havia um exclusivismo da pecuária. Na década de 1780, os lavradores suplantavam em número os criadores de gado. Então, 65% dessa população praticava agricultura em maior ou menor grau - "uma proporção ignorada pela historiografia tradicional", como indica Helen Osório. A paisagem agrária da Capitania combinava plantações de alimentos (muito trigo e mandioca) e criação de animais, uma combinação semelhante ao que ocorria na Campanha de Buenos Aires e na Colônia de Sacramento - e que "uma nova historiografia argentina vem revelando".
O continente, aqui, tinha 19 freguesias e distritos: Vacaria, Santo Antônio da Patrulha, Conceição do Arroio, Porto Alegre, Viamão, Lombas, Nossa Senhora dos Anjos, Caí, Triunfo, Santo Amaro, Taquari, Rio Pardo, Cachoeira, Encruzilhada, Povo Novo, Cerro Pelado, Rio Grande, Estreito e Mostardas. Em apenas dois o censo não registrou lavradores: Cerro Pelado e Encruzilhada. A posse de escravos estava disseminada por toda a população livre desde o início da colonização portuguesa, em todas as atividades rurais, mesmo na pecuária. Domingos Gomes Ribeiro, morto em 1764, tinha 7.200 cabeças de gado e 49 escravos. Helen Osório fala do senso comum cristalizado pelos relatos dos viajantes.
No capítulo XIV de Colônia, Da Terra de Ninguém à Terra de Muitos: Olhares Viajantes e Imagens Fundadoras, Eliane Cristina Deckmann Fleck, pesquisadora da Unisinos, salienta que a literatura de viagem, na condição de fonte historiográfica, deve ser lida como uma reinvenção da realidade, como uma visão de mundo de alguém que escreve pensando em outro mundo, como "a transformação historiográfica de uma memória".
Os olhares dos viajantes ergueram imagens fundadoras do Rio Grande do Sul.
A fundação do Instituto Histórico e Geográfico do Estado, em 1922, lembra Eliane Fleck, consolidou a nossa historiografia tradicional, "tributária, em grande medida, dos relatos inaugurais produzidos pelos cronistas do período colonial". Os relatos de missionários, demarcadores, cientistas e autoridades administrativas do período forjaram o sonho de uma sociedade desde sempre democrática. Escreve Eliane Fleck: "A rusticidade e a frugalidade da vida senhorial, ao lado da hospitalidade, da camaradagem e fraternidade das relações interpessoais acabaram por determinar essa visão idealizada que ressalta o igualitarismo, a ausência de hierarquia, de privilégios e de privilegiados".
É importante ter em mente o teor propagandístico desses relatos, a retórica utilitarista, a vontade de aplicar uma civilização européia no território bárbaro. Eliane Fleck afirma que chega a ser monótono que os documentos da época peçam o tempo inteiro remessas de casais para o povoamento do Sul. Citado por Guilhermino César em Primeiros Cronistas do Rio Grande do Sul (1969), André Ribeiro Coutinho, segundo governador do Rio Grande, garantiu em 1737 uma "terra dos muitos" a quem viesse ocupar o chão.
Catedral Metropolitana e Palácio do Governo em Porto Alegre - RS
Em Os Primeiros Pintores: Presenças Desapercebidas, Ausências Sentidas, que é o capítulo XVIII de Império, Neiva Maria Fonseca Bohns, professora de História da Arte da Universidade Federal de Pelotas, comenta, entre outros olhares, um olhar de Pedro Weingärtner. Nascido em Porto Alegre, de uma família de desenhistas e litógrafos, estabelecido para estudos na Alemanha e radicado na Itália, o artista compôs em 1898 a tela Tempora Mutantur. Executou a tela em seu ateliê em Roma, a partir de anotações tomadas em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. Não escolheu personagens notórios da história brasileira recente. Escolheu, como faziam os pintores realistas europeus daqueles anos, uma cena com trabalhadores no campo.
Tempora Mutantur - Pedro Weingärtner |
Exaustos, os dois personagens da tela fazem uma pausa no trabalho de preparar a terra bruta. Há árvores recém-abatidas a alguns passos deles. O homem e a mulher, transplantados da Europa, estão escorados em seus instrumentos. A mulher aparentemente machucou a palma da mão esquerda. Neiva Bohns diz que "parece pairar a dúvida sobre continuar ou desistir", e que o olhar evidente é: a semente de uma promissora economia agrícola "dependia da força e da coragem desses pioneiros". No meio de "uma natureza ainda exuberante de um país de recursos aparentemente inesgotáveis", o homem e a mulher lutam por um ambiente "culturalmente propício à sobrevivência".
Tempora Mutantur foi exposta em Porto Alegre em junho de 1899 e teve boa repercussão. Borges de Medeiros, presidente do Estado, comprou a tela para o Palácio do Governo, na primeira demonstração do poder republicano, aqui, de interesse por artes plásticas. Escreve Neiva Bohns: "Para um governo empenhado em consolidar as bases simbólicas de uma tradição regional, era vantajoso o incentivo da produção de imagens capazes de narrar as façanhas que colaboraram para a constituição do imaginário do povo gaúcho".
Jornalista RODRIGO BREUNIG
Coleção "História Geral do RGS" no Caderno Cultura
Publicado no Caderno Cultura - Jornal Zero Hora - 04-11-2006
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