Quis
o destino que esta conferência fosse proferida na sequência da
consumação de grave ruptura na ordem democrática nacional que resultou
no impeachment da Presidente Dilma Rousseff. As travessuras do fado me
ajudam a situar esta traumática ruptura no contexto mais amplo das
profundas e aceleradas transformações que marcam a evolução do sistema
internacional neste início de século 21.
Os promotores,
apoiadores e executores da ruptura consumada alegam que o processo não
pode ser classificado de “golpe”, já que os ritos formais definidos pela
Constituição e pelo Congresso teriam sido cumpridos, com acompanhamento
do Supremo Tribunal Federal (STF). Mas o mero cumprimento de ritos não
confere legitimidade democrática ao processo. A própria experiência do
golpe civil-militar deflagrado no Brasil em 1964 nos mostra isso com
clareza. Na madrugada de dois de abril daquele ano, cumprindo o rito
previsto, o Congresso se reuniu, com o beneplácito do Supremo, para
consumar o golpe ao declarar a vacância da Presidência da República, já
que o Presidente João Goulart estaria fora do país. Mas essa alegação
era mero pretexto: o Presidente se encontrava em território nacional.
Cumprindo o rito – a partir de uma alegação infundada – o presidente
legítimo e democraticamente eleito foi destituído pelo Congresso,
inaugurando um regime autoritário no país que durou duas décadas.
A
palavra “golpe”, em português, tem variados significados. Um desses
significados é o de “artimanha”. No rito congressual do impeachment, a
artimanha se materializou na de ampliação e flexibilização da definição
de “crimes de responsabilidade” para abarcar as chamadas “pedaladas
fiscais” – práticas administrativas e orçamentárias recorrentes em
sucessivos governos federais e em outras unidades da Federação – e, em
seguida, empregar seletivamente esse “conceito ampliado” para cassar um
mandato conferido soberanamente pelo eleitorado. A alegação de crime se
torna mero pretexto para alcançar um objetivo político. Assim como em
1964, o cumprimento de rito formal, com conteúdo deturpado, não torna a
ação de afastamento da Presidente legítima.
“Golpe” também pode
significar “pancada” ou “abalo” decorrente de agressão. A gravidade do
atual recurso ao instituto do impeachment reside no fato dele golpear
(abalar/subverter) o princípio basilar da democracia representativa: a
constituição de governos com base na soberania popular, expressa no
sufrágio majoritário de cidadãos/eleitores. Em regimes parlamentaristas,
esse princípio convive com a possibilidade de afastamento do chefe de
governo e convocação de novas eleições gerais, via voto de não-confiança
no Parlamento. Em regimes presidencialistas, como o nosso, o princípio
exige o reconhecimento e respeito da autoridade legitimada pelas urnas
durante todo o seu mandato, cabendo às oposições tentar conquistar
maioria de votos no pleito seguinte para trocar o comando do governo.
Numa
democracia jovem e ainda pouco consolidada como a brasileira, o risco
que corremos é o da banalização do instituto do impeachment,
transformado em recurso usual da disputa política para apear governantes
que tenham perdido eventual maioria congressual. Em regime
presidencialista, isso estimula nas oposições (quaisquer que elas sejam)
posturas de desrespeito à legitimidade do mandato conferido pela
soberania popular nas urnas, minando e ameaçando a estabilidade do
sistema democrático. Neste, a revogação de um mandato conferido
livremente pelo povo só deve ser admitida como recurso extremo em
situações excepcionalíssimas, quando a própria ordem democrática estiver
sob grave ameaça. Como sabemos, não era essa a base do processo votado
no Congresso Nacional.
No sentido político mais usual, “golpe”
também significa a ação de um bloco de atores para apear (ou tentar
apear) outro bloco do poder, à margem dos processos eleitorais que devem
reger a alternância de poder em regimes democráticos. De forma geral,
esta ação para a alteração não-democrática (isto é, não ancorada na
soberania popular expressa no voto) da composição do poder político visa
abrir caminho para uma reorientação das políticas implementadas pelo
grupo destituído, reorientação esta que teria dificuldade de obter apoio
majoritário em processos eleitorais regulares.
Na ruptura
institucional consumada no Brasil todas estas acepções do “golpe” se
encontraram e se fundiram, ainda que o processo atual não reproduza a
forma das intervenções e sublevações militares que tanto marcaram a
nossa história no Século 20. Mas a ruptura institucional em curso não é
um fenômeno exclusivamente brasileiro. Por isso é importante situá-la – e
os processos análogos que se verificam em outras experiências sul e
centro-americanas – no contexto da transição estrutural em curso no
sistema internacional neste início de Século 21.
Desenvolvimento Desigual e Ordem Mundial
A
evolução das relações de poder neste início de século apontam
claramente para a transição do quadro de dominação unipolar que marcou o
imediato pós-Guerra Fria no final do século passado, com a
intensificação de tendências à multipolarização e à instabilidade no
sistema internacional, fomentadas e alimentadas pela dinâmica de
desenvolvimento desigual do capitalismo. Retomo, aqui, o conceito de
“desenvolvimento desigual” formulado originalmente por Lênin a partir de
reflexões de Hobson e Hilferding nos debates teóricos sobre a Economia
Política do Imperialismo há um século, e retomado por estudiosos atuais
da Economia Política das Relações Internacionais, como Robert Gilpin.
Contrariamente
à interpretação que acabou predominando nos enfoques da chamada Teoria
da Dependência latino-americana nos anos 1960 e 70, inspirada por Andre
Gunder Frank, o conceito de “desenvolvimento desigual” formulado no
contexto do debate original sobre a natureza do imperialismo não aponta
para o contínuo aprofundamento das assimetrias entre “centro” e
“periferia” na economia capitalista mundial, mas precisamente para o seu
contrário: a tendência estrutural à erosão do poder do centro
hegemônico face à ascensão de novos polos de maior dinamismo econômico
em áreas de desenvolvimento capitalista mais tardio, no próprio centro
ou na periferia do sistema.
Os estudiosos realistas das relações
internacionais, como Paul Kennedy e o próprio Gilpin, associam esse
fenômeno aos altos custos da manutenção da hegemonia e à tendência para
uma rápida difusão tecnológica para a periferia, (em função das
“vantagens do atraso” identificadas por Alexander Gerschenkron, que
permitiriam aos retardatários queimar etapas de desenvolvimento ao
incorporar técnicas mais avançadas e eficientes). Já a abordagem que
Kenneth Waltz batizou de “paradigma Hobson/Lênin” destacava o impacto
dos processos de monopolização, do advento do capital financeiro e da
crescente financeirização dos circuitos de acumulação nos países
capitalistas centrais, levando à multiplicação de investimentos e
aplicações em áreas mais “atrasadas” da economia mundial onde as taxas
de lucro e de retorno eram mais elevadas. Assim, os ganhos do capital
financeiro, no coração do sistema, passaram a ser cada vez mais
alimentados por uma lógica rentista, uma lógica de especulação
sustentada por excedentes extraídos de atividades produtivas realizadas
fora do centro. Essa dinâmica levaria à decomposição do dinamismo
econômico do centro e à ascensão de novos polos de maior crescimento no
sistema. Estes, por sua vez, passariam a se confrontar com estruturas
geopolíticas de dominação e governança internacional que não refletiriam
mais a configuração geoeconômica mundial. Ou seja, a dinâmica
estrutural de desenvolvimento desigual mina continuamente as bases da
ordem mundial estabelecida.
A erosão do poder hegemônico
relativo das potências dominantes decorrente desta dinâmica estaria,
assim, na origem da instabilidade, transição e mudança de sucessivas
ordens mundiais. Emprego o conceito de “ordem mundial” aqui em sentido
estrito, que remete a configurações relativamente estáveis e
persistentes de poder no sistema internacional moderno – e não a
variadas proposições de ordenamento civilizacional geradas ao longo da
história humana, como concebido por Kissinger. Pela chave
teórico-conceitual que emprego, três grandes “ordens mundiais” podem ser
identificadas, a grosso modo, na evolução do sistema internacional
moderno desde a sua consolidação na Paz de Vestefália de 1648. A
primeira é uma ordem não hegemônica regida pelo mecanismo do “balanço de
poder” das grandes potências em um sistema de abrangência basicamente
europeia (com ramificações coloniais em outras regiões do planeta,
sobretudo nas Américas). Em meio a agudas tensões e conflitos, esta
ordem se estende até a derrota militar da ameaça sistêmica representada
pela França napoleônica em 1815. A ordem mundial que emerge das guerras
napoleônicas preserva o mecanismo do balanço de poder no teatro europeu,
mas expande as fronteiras do sistema para todo o planeta através do
poder hegemônico da Inglaterra (que, impulsionada pela conquistas da
Revolução Industrial, solapa e desmantela ordens civilizacionais
alternativas, sobretudo na Ásia). Esta ordem, marcada pelo que Polanyi
chamou de “cem anos de paz” na Europa, entra em colapso com o advento da
Primeira Guerra Mundial, em 1914, a que se segue um período de
transição interrompido pela deflagração da Segunda Guerra Mundial, em
1939, período este examinado na obra clássica de E. H. Carr Vinte Anos
de Crise. A nova ordem que emerge dos escombros da Segunda Guerra é de
hegemonia contestada: a Guerra Fria. Por um lado, os Estados Unidos
consolidam e afirmam a sua hegemonia sobre o mundo capitalista –
formalizada e explicitada nos acordos de Bretton Woods -, e por outro, a
União Soviética encabeça a formação de um sistema mundial socialista
alternativo. Como bem observou Fred Halliday, a disputa no cerne desta
ordem configurava um conflito intersistêmico, e não mera reedição do
mecanismo do balanço de poder. No contexto do deslocamento das antigas
potências coloniais europeias e do delicado equilíbrio alcançado no
sistema de segurança coletiva da ONU na Guerra Fria, a própria forma de
organização política em estados soberanos foi globalizada após
sucessivas ondas de descolonização.
Como se sabe, a ordem
mundial da Guerra Fria se encerrou em 1989 com a implosão do bloco
soviético na Europa Central e do Leste, e subsequente desmantelamento da
própria União Soviética e do sistema mundial alternativo que ela
estruturava. O que se seguiu foi um período de transição no sistema
internacional que perdura até hoje. A impressão inicial era de que se
configuraria rapidamente uma novíssima ordem, baseada no predomínio
unipolar e inconteste da potência vencedora da Guerra Fria – os Estados
Unidos – no sistema e nas suas instituições multilaterais de governança
global. Esta impressão se traduzia em formulações como as do “fim da
História”, do advento de uma “nova ordem mundial” ou, em chave mais
crítica, de uma nova forma de “Império”. A esta fase na transição, que
marcou os anos ’90, logo se seguiu outra, em que ficou evidente a
crescente dificuldade dos EUA gerarem convergência em torno das suas
posições e interesses nos fóruns multilaterais, ao que responderam com
uma crescente disposição ao recurso a ações unilaterais de força para
tentar afirmar esses mesmos posicionamentos e interesses. O marco da
passagem para esta nova fase foi a reação empreendida pelos Estados
Unidos aos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, com a
decretação da “Guerra Global ao Terror” e subsequentes invasões do
Afeganistão e do Iraque.
A Transição em Curso na Ordem Mundial
Entendo
que as chaves teóricas apresentadas acima são fundamentais para
entender a transição em curso no sistema internacional, já que os
processos de globalização financeira que marcaram a evolução do
capitalismo nas últimas décadas intensificaram exponencialmente tanto os
mecanismos de financeirização quanto a natureza especulativa/rentista
da acumulação no coração do sistema, constituindo o que Susan Strange
chamava de “capitalismo de cassino”. Neste contexto, a evolução do
sistema internacional no início do Século 21 é marcada pela emergência
de novos polos de poder no mundo que não compunham o núcleo central do
sistema internacional moderno que conquistou abrangência global no
Século 19, com destaque para a China e a Índia. A China %u211 que ainda
encarna a particularidade de ser um estado de orientação socialista
integrado à economia capitalista mundial – mais do triplicou sua
participação relativa no PIB mundial medida por Paridade de Poder de
Compra (PPC) a partir da deflagração da política das “Quatro
Modernizações” em 1979, sustentando médias de crescimento próximas a 10%
ao ano desde então. O próprio FMI, que previra que a China
ultrapassaria os Estados Unidos em participação relativa no PIB mundial
(PPC) em 2016, reconhece que esta ultrapassagem foi antecipada e teria
se verificado em 2014. Já a Índia quase dobrou sua participação no PIB
mundial (PPC) no mesmo período, com médias anuais de crescimento
superiores a 6%. Como tive oportunidade de destacar em artigo recente,
com delays variados, a evolução dos indicadores que se referem a
dimensões cruciais da agregação de valor na era do conhecimento –
produção científica e tecnológica medida por artigos publicados em
revistas indexadas; registro de patentes; participação na lista de
empresas detentoras dos maiores ativos globais; entre outros – caminha
na mesma direção.
Na história da economia mundial moderna, a
trajetória chinesa e indiana das últimas décadas em direção ao centro do
sistema a partir da sua “periferia” só tem precedentes na ascensão dos
próprios Estados Unidos e da Alemanha pós-unificação no Século 19. Ambos
os países – a China e a Índia – se caracterizam, ainda, por possuir as
maiores populações do planeta, extensões territoriais amplas, poderio
militar nuclear, além de estruturas estatais de planejamento e regulação
que não sucumbiram às pressões pela liberalização financeira e cambial
durante a ofensiva neoliberal global dos anos ’80 e ’90.
Há que
se destacar, também, a intensificação da atuação internacional da
Rússia, sobretudo a partir da eleição de Putin, procurando retomar e
reconstituir esferas de influência para enfrentar a política de cerco
fomentada pelos Estados Unidos com a contínua expansão da OTAN para o
leste. Após o colapso econômico e social provocado pelo processo de
restauração do capitalismo, a Rússia procura reconstruir instrumentos
estatais de planejamento, intervenção e regulação econômica, em parte
herdados do período socialista. Nesta base, conseguiu recuperar o
dinamismo da sua economia após a crise financeira de 1998 e alcançar, em
2007, o patamar de atividade econômica que possuía antes do colapso do
socialismo em 1991 (embora tenha sido fortemente atingida pela queda dos
preços do petróleo e do gás no mercado mundial na sequência da crise
econômico-financeira deflagrada em 2008). Cabe lembrar que, como herança
do esforço realizado para alcançar paridade estratégica com os EUA
durante a Guerra Fria, a Rússia preserva, ainda hoje, o segundo maior
arsenal nuclear do mundo – e manifesta uma disposição crescente para se
contrapor à ofensiva norte%u211americana sobre suas antigas áreas de
influência (como fica evidente no seu crescente envolvimento na crise da
Síria, frustrando e derrotando a iniciativa dos Estados Unidos para
forçar, via intervenção da OTAN, a derrubada do regime de Bashar
Al-Assad e o triunfo das forças oposicionistas na Guerra Civil). Neste
movimento, atua abertamente como potência energética, explorando os
recursos de poder conferidos por suas gigantescas reservas de petróleo e
gás para integrar sua área de influência na Ásia Central e explorar a
dependência energética europeia.
Luís Fernandes - Outras Palavras
Referências:
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... Carr, E. H., Vinte Anos de Crise:1919 – 1939. Brasília: Editora da UNB, 2001
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... Fernandes, L., Garcia, A. e Cruz, P., “Desenvolvimento Desigual na Era do Conhecimento: a Participação dos BRICS na Produção Científica e Tecnológica Mundial”, Contexto Internacional. Rio de Janeiro, vol. 37, nº 1, janeiro/abril 2015
... Frank, Andre Gunder, “Development of Underdevelopment”, Monthly Review, Nova Iorque: vol. 18, nº 4, 1966
... Fukuyama, Francis, O Fim da História e o Último Homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992
... Negri, Antonio e Hardt, Michael, Império. Rio de Janeiro: Rocco, 2000
... Gerschenkron, Alexander, O Atraso Econômico em Perspectiva Histórica e Outros Ensaios. Rio de
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... Gilpin, Robert, A Economia Política das Relações Internacionais. Brasília: Editora da UNB, 2002
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... Hilferding, Rudolf, O Capital Financeiro. São Paulo: Nova Cultural, 1985
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... Kennedy, Paul, Ascensão e Queda das Grandes Potências. Rio de Janeiro: Campus, 1989
... Kissinger, Henry, Ordem Mundial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015
... Lampreia, Luiz Felipe, Diplomacia Brasileira. Rio de Janeiro: Lacerda Editora, 1999
... Lênin, Vladimir, “O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo”, in V. I. Lênin, Obras Escolhidas – Tomo 2. Lisboa: Edições “Avante!”, 1984
... Strange, Susan, Casino Capitalism. Manchester: Manchester University Press, 2015
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09RIODEJANEIRO369_a. obtido em
https://wikileaks.org/plusd/cables/09RIODEJANEIRO369_a.html
...
* Este texto, que Outras Palavras publica em três capítulos, corresponde à aula inaugural proferida no
IESP/UERJ
em 5 de setembro de 2016. O trabalho intitula-se, originalmente, “Da
Transição na Ordem Mundial à Ruptura na Ordem Democrática Nacional”. A
responsabilidade pela divisão em três capítulos, e por seus novos
títulos, é de nossa edição.
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