Relatório Figueiredo - O extermínio documentado
Relatório de mais de 7 mil páginas que relatam massacres e torturas de índios no interior do país, dado como queimado num incêndio, é encontrado intacto 45 anos depois.
Depois
de 45 anos desaparecido, um dos documentos mais importantes produzidos
pelo Estado brasileiro no último século, o chamado Relatório Figueiredo,
que apurou matanças de tribos inteiras, torturas e toda sorte de
crueldades praticadas contra indígenas no país – principalmente por
latifundiários e funcionários do extinto Serviço de Proteção ao Índio
(SPI) –, ressurge quase intacto. Supostamente eliminado em um incêndio
no Ministério da Agricultura, ele foi encontrado recentemente no Museu
do Índio, no Rio, com mais de 7 mil páginas preservadas e contendo 29
dos 30 tomos originais.
Jader Figueiredo Júnior relembra o transtorno que a divulgação do relatório trouxe à família e diz que seu pai chegou a ser ameaçado de morte. “Ele sofreu atentados, foi perseguido por pistoleiros durante a investigação. Nossa família vivia sob segurança da Polícia Federal”, relembra. Ele destaca que o pai não era uma pessoa vaidosa e não gostava de aparecer. “Ele se indignava de pensar que seu trabalho podia ficar no ‘dito pelo não dito’. Viu muita injustiça, muita crueldade. E morreu na esperança de seu trabalho aparecer de novo, de algum jeito. Onde ele estiver agora, estará feliz”, acredita o filho.
Jader Júnior relata uma passagem que o pai costumava contar em casa, sobre uma índia que foi morta e cortada ao meio em público. Segundo ele, quando o procurador chegou à aldeia, encontrou a mulher amarrada entre duas estacas pelos pés, de cabeça para baixo, partida longitudinalmente ao meio por piques de facão. “O brasileiro costuma assistir a filmes de Hollywood onde cauboís matam índios e acha bonito. O que o americano fez com os índios foi brincadeira em relação ao que foi feito aqui. Lá foi uma matança, aqui foi genocídio. Uma coisa nazista, hitlerista. E o brasileiro não tem consciência disso. Isso é uma coisa que o mundo precisa saber”, revolta-se o filho.
A perplexidade do pai está indelével no relatório recuperado: “Os criminosos continuam impunes, tanto que o presidente dessa comissão viu um dos asseclas desse hediondo crime (assassínio de Cintas Largas, no Mato Grosso) sossegadamente vendendo picolé a crianças em uma esquina de Cuiabá (MT)”.
Catalogação
Marcelo Zelic também expressa grande alegria pela descoberta do documento. “Eu o achei inteirinho”, exclama o pesquisador, que percebeu que os papeis ilegíveis eram o famoso Relatório Figueiredo, que ficou batizado com o nome do procurador. Ele descreve que foi chamado ao Museu do Índio em agosto do ano passado para analisar documentação que estava em posse da entidade desde 2008 e havia sido catalogada em 2010. Das 62 páginas finais entregues ao ministro Albuquerque Lima pelo procurador Jader de Fiqueiredo, 15 estavam em estado precário de preservação. O ativista garante, porém, que os trabalhos desenvolvidos pelo Museu do Índio, Tortura Nunca Mais de São Paulo, Comissão Justiça e Paz de São Paulo, Konoinia Presença e Serviço, Associação Juízes para a Democracia e Armazém Memória, com apoio da deputada Luíza Erundina (PSB-SP), conseguiu recuperar todas elas, que estão sendo catalogadas.
Dois dos questionamentos que o relatório pode suscitar são em relação a posse de terras – como a dos índios kadieus, em Mato Grosso – e a acusados de crimes não apurados. Em uma das páginas entregues a Albuquerque Lima, por exemplo, quatro nomes são citados como responsáveis por diversos crimes. São eles: Abílio Aristimunho, Acir Barros, Airton de França e Alan Kardec Martins Pedrosa.
Em uma das inúmeras passagens brutais do
texto, a que o Estado de Minas teve acesso e publica na data em que se
comemora o Dia do Índio, um instrumento de tortura apontado como o mais
comum nos postos do SPI à época, chamado “tronco”, é descrito da
seguinte maneira: “Consistia na trituração dos tornozelos das vítimas,
colocadas entre duas estacas enterradas juntas em um ângulo agudo. As
extremidades, ligadas por roldanas, eram aproximadas lenta e
continuamente”.
Entre denúncias de caçadas humanas promovidas com metralhadoras e
dinamites atiradas de aviões, inoculações propositais de varíola em
povoados isolados e doações de açúcar misturado a estricnina, o texto
redigido pelo então procurador Jader de Figueiredo Correia ressuscita
incontáveis fantasmas e pode se tornar agora um trunfo para a Comissão
da Verdade, que apura violações de direitos humanos cometidas entre 1946
e 1988.
A investigação, feita em 1967, em plena ditadura, a
pedido do então ministro do Interior, Albuquerque Lima, tendo como base
comissões parlamentares de inquérito de 1962 e 1963 e denúncias
posteriores de deputados, foi o resultado de uma expedição que percorreu
mais de 16 mil quilômetros, entrevistou dezenas de agentes do SPI e
visitou mais de 130 postos indígenas. Jader de Figueiredo e sua equipe
constataram diversos crimes, propuseram a investigação de muitos mais
que lhes foram relatados pelos índios, se chocaram com a crueldade e
bestialidade de agentes públicos. Ao final, no entanto, o Brasil foi
privado da possibilidade de fazer justiça nos anos seguintes.
Albuquerque Lima chegou a recomendar a demissão de 33 pessoas do SPI e a
suspensão de 17, mas, posteriormente, muitas delas foram inocentadas
pela Justiça.
Os únicos registros do relatório disponíveis até
hoje eram os presentes em reportagens publicadas na época de sua
conclusão, quando houve uma entrevista coletiva no Ministério do
Interior, em março de 1968, para detalhar o que havia sido constatado
por Jader e sua equipe. A entrevista teve repercussão internacional,
merecendo publicação inclusive em jornais como o New York Times. No
entanto, tempos depois da entrevista, o que ocorreu não foi a
continuação das investigações, mas a exoneração de funcionários que
haviam participado do trabalho. Quem não foi demitido foi trocado de
função, numa tentativa de esconder o acontecido. Em 13 de dezembro do
mesmo ano o governo militar baixou o Ato Institucional nº 5,
restringindo liberdades civis e tornando o regime autoritário mais
rígido.
O vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais de São
Paulo e coordenador do Projeto Armazém Memória, Marcelo Zelic, foi quem
descobriu o conteúdo do documento até então guardado entre 50 caixas de
papelada no Rio de Janeiro. Ele afirma que o Relatório Figueiredo já
havia se tornado motivo de preocupação para setores que possivelmente
estão envolvidos nas denúncias da época antes de ser achado. “Já tem
gente que está tentando desqualificar o relatório, acho que por um forte
medo de ele aparecer, as pessoas estão criticando o documento sem ter
lido”, acusa.
Suplícios O contexto
desenvolvimentista da época e o ímpeto por um Brasil moderno encontravam
entraves nas aldeias. O documento relata que índios eram tratados como
animais e sem a menor compaixão. “É espantoso que existe na estrutura
administrativa do país repartição que haja descido a tão baixos padrões
de decência. E que haja funcionários públicos cuja bestialidade tenha
atingido tais requintes de perversidade. Venderam-se crianças indefesas
para servir aos instintos de indivíduos desumanos. Torturas contra
crianças e adultos em monstruosos e lentos suplícios”, lamentava
Figueiredo. Em outro trecho contundente, o relatório cita chacinas no
Maranhão, em que “fazendeiros liquidaram toda uma nação”. Uma CPI chegou
a ser instaurada em 1968, mas o país jamais julgou os algozes que
ceifaram tribos inteiras e culturas milenares.
Postado em 19/04/2013 06:00
/ atualizado em 19/04/2013 08:35
"Voz solitária na ditadura"
Filho se emociona ao falar do trabalho de investigação feito pelo procurador sobre massacre indígena
Ele relembra a perseguição imposta à família quando o texto foi tornado público, em pleno regime militar
Foto incluída no Relatório Figueiredo: 15 das 68 páginas estavam em estado precário, mas foram totalmente recuperadas |
Em 1977, uma comissão parlamentar de inquérito foi aberta na Câmara
para investigar violações de direitos humanos dos índios. No ano
anterior, o procurador que produziu o relatório morreu em acidente de
ônibus, aos 53 anos. Perguntado se a morte do pai pode ter sido
provocada por opositores, o filho considera: “Eu nunca tinha pensado
nisso, eu tinha 14 anos incompletos na época. Pode ser. Meu pai morreu
em um acidente que nunca foi esclarecido”.
Jader Figueiredo Júnior relembra o transtorno que a divulgação do relatório trouxe à família e diz que seu pai chegou a ser ameaçado de morte. “Ele sofreu atentados, foi perseguido por pistoleiros durante a investigação. Nossa família vivia sob segurança da Polícia Federal”, relembra. Ele destaca que o pai não era uma pessoa vaidosa e não gostava de aparecer. “Ele se indignava de pensar que seu trabalho podia ficar no ‘dito pelo não dito’. Viu muita injustiça, muita crueldade. E morreu na esperança de seu trabalho aparecer de novo, de algum jeito. Onde ele estiver agora, estará feliz”, acredita o filho.
Jader Júnior relata uma passagem que o pai costumava contar em casa, sobre uma índia que foi morta e cortada ao meio em público. Segundo ele, quando o procurador chegou à aldeia, encontrou a mulher amarrada entre duas estacas pelos pés, de cabeça para baixo, partida longitudinalmente ao meio por piques de facão. “O brasileiro costuma assistir a filmes de Hollywood onde cauboís matam índios e acha bonito. O que o americano fez com os índios foi brincadeira em relação ao que foi feito aqui. Lá foi uma matança, aqui foi genocídio. Uma coisa nazista, hitlerista. E o brasileiro não tem consciência disso. Isso é uma coisa que o mundo precisa saber”, revolta-se o filho.
A perplexidade do pai está indelével no relatório recuperado: “Os criminosos continuam impunes, tanto que o presidente dessa comissão viu um dos asseclas desse hediondo crime (assassínio de Cintas Largas, no Mato Grosso) sossegadamente vendendo picolé a crianças em uma esquina de Cuiabá (MT)”.
Catalogação
Marcelo Zelic também expressa grande alegria pela descoberta do documento. “Eu o achei inteirinho”, exclama o pesquisador, que percebeu que os papeis ilegíveis eram o famoso Relatório Figueiredo, que ficou batizado com o nome do procurador. Ele descreve que foi chamado ao Museu do Índio em agosto do ano passado para analisar documentação que estava em posse da entidade desde 2008 e havia sido catalogada em 2010. Das 62 páginas finais entregues ao ministro Albuquerque Lima pelo procurador Jader de Fiqueiredo, 15 estavam em estado precário de preservação. O ativista garante, porém, que os trabalhos desenvolvidos pelo Museu do Índio, Tortura Nunca Mais de São Paulo, Comissão Justiça e Paz de São Paulo, Konoinia Presença e Serviço, Associação Juízes para a Democracia e Armazém Memória, com apoio da deputada Luíza Erundina (PSB-SP), conseguiu recuperar todas elas, que estão sendo catalogadas.
Dois dos questionamentos que o relatório pode suscitar são em relação a posse de terras – como a dos índios kadieus, em Mato Grosso – e a acusados de crimes não apurados. Em uma das páginas entregues a Albuquerque Lima, por exemplo, quatro nomes são citados como responsáveis por diversos crimes. São eles: Abílio Aristimunho, Acir Barros, Airton de França e Alan Kardec Martins Pedrosa.
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