"Ao convertê-lo em uma ideologia
estatal, o stalinismo transformou o marxismo em uma religião. A imagem
síntese dessa religião de Estado é o corpo mumificado de Lenin,
placidamente repousando em seu mausoléu de Moscou. Todo ano, milhares de
peregrinos visitam o santo soviético em um ritual sincrético no qual os
símbolos comunistas se misturam com o gestual da Igreja ortodoxa. Como
crítica social a religião de Estado tinha vitalidade igual a esse
cadáver. Servia para justificar um regime burocrático, para fortalecer
as correntes que aprisionavam mulheres e homens, mas não para emancipar a
humanidade. Também essa religião de Estado se encontrava morta".
Certa feita, Jean-Paul Sartre afirmou que o marxismo era a filosofia
insuperável de nossa época. Ao afirmar isso registrou o caráter
histórico do marxismo, o qual era o ponto de culminância e a negação do
pensamento filosófico precedente. A afirmação registrava, ao mesmo
tempo, a finitude dessa forma de pensamento, cuja existência encontra-se
condenada ao quadro social que ele procurou explicar. Ao reconhecer sua
própria finitude, o marxismo assumiu-se como um pensamento profano.
A relação do marxismo com a história filosófica e social de sua época
era, uma relação contraditória. Ele nascia daquilo que queria negar.
Desde o início estava claro para Marx que a critica à filosofia de sua
época era uma negação de todo pensamento teológico. Na Prússia da
primeira metade do século XIX, a religião era uma politica de Estado.
Levantar-se contra o monopólio da Igreja na vida civil era, também,
protestar contra a autocracia política. Para realizar-se a filosofia
deveria romper com todo pressuposto teológico, mas isso significava
negar-se a si própria. Marx lançou-se de maneira implacável nesse
trabalho de liquidação e rapidamente percebeu que para emancipar a razão
também era preciso emancipar a humanidade.
O marxismo realizou a crítica da filosofia hegeliana e da economia
política ricardiana, negando-as. Sem essas formas teóricas nunca teria
existido, mas não foi a seus estreitos quadros intelectuais que o
marxismo se conformou. A filosofia marxista não é a dialética hegeliana,
assim como sua teoria do valor não é ricardiana. Ao realizar a crítica
às formas intelectuais precedentes, Karl Marx assentou as bases para a
crítica radical da própria sociabilidade na qual estas se assentavam,
atacou a reificação das relações sociais, as quais aparecem no
capitalismo como relações entre coisas, e investiu contra o fetichismo
da forma estatal, que se manifesta como expressão da vontade geral.
Apenas sob o látego da crítica o mundo não teria se vergado. Foi
necessário que a teoria descobrisse o movimento dos trabalhadores para
que se tornasse uma força material. Não foi um encontro casual. A teoria
e a prática não foram mais as mesmas depois dessa reunião. Nas ruas de
Paris, Marx tomou contato com a agitação comunista inspirada pelas
ideias de Gracchus Babeuf e de Flora Tristan. Desse encontro nada
casual, nasceu uma nova prática política, reinventando o
internacionalismo e recriando a forma partido. Em 1848, o comunismo era
só um espectro. Em 1871, uma ameaça real.
Nesse encontro com o movimento dos trabalhadores a crítica ao
pensamento iluminista adquiriu contornos mais radicais. O romantismo
espontâneo e revolucionário, presente na revolta dos tecelões da
Silésia, nos cartistas ingleses e nos comunistas utópicos franceses,
carregava consigo uma recusa das novas formas sociais que a
mercantilização de todas as relações e a grande indústria impunham com
uma violência extraordinária. A miséria crescente, a exclusão da vida
política da comunidade, a animalização da existência humana na fábrica
eram objetos de recusa.
Essa recusa não perdoava sequer a razão. O próprio Iluminismo era
colocado sob suspeição. “As águas geladas do cálculo egoísta”, já
assinalaram Marx e Engels no Manifesto comunista, profanaram tudo
o que era sagrado e desmancharam no ar tudo o que era sólido e estável.
Não havia motivo para uma confiança cega nos poderes da razão. Ao invés
de emancipar a humanidade, libertando-a de todas as correntes, a razão
iluminista servia para justificar uma nova e crescente opressão. As
correntes políticas do antigo regime haviam cedido lugar aos grilhões da
exploração capitalista. Que os novos senhores afirmassem agir em nome
da ciência não mudava as coisas.
De braços dados com essa crítica romântica à razão burguesa caminhava
uma moral profana. Pacientemente destilada no alambique das revoltas
camponesas e das heresias religiosas, essa moral amaldiçoava a miséria e
o sofrimento dos mais fracos e louvava a solidariedade comunitária. Nos
grandes centros urbanos ela descobriu o imperativo da organização, dos
clubes, dos sindicatos, das associações e, finalmente, do partido.
Terçou armas não apenas contra os governantes e os proprietários, mas
também contra seus guardiões espirituais, o clero e a instituição
eclesiástica. Saiu das igrejas, perdeu seus traços místicos e adquiriu
um caráter profano.
Um pensamento que sempre foi profano não pode ser transformado em uma
religião laica, sob pena de perecer. Ao convertê-lo em uma ideologia
estatal, o stalinismo transformou o marxismo em uma religião. A imagem
síntese dessa religião de Estado é o corpo mumificado de Lenin,
placidamente repousando em seu mausoléu de Moscou. Todo ano, milhares de
peregrinos visitam o santo soviético em um ritual sincrético no qual os
símbolos comunistas se misturam com o gestual da Igreja ortodoxa. Como
crítica social a religião de Estado tinha vitalidade igual a esse
cadáver. Servia para justificar um regime burocrático, para fortalecer
as correntes que aprisionavam mulheres e homens, mas não para emancipar a
humanidade. Também essa religião de Estado se encontrava morta.
O marxismo deve ser inimigo das igrejas, dos profetas, dos papas, dos
sacerdotes e coroinhas, dos textos sagrados, da adoração dos mortos,
dos cultos aos santos. Mas só pode ser esse inimigo se combater de modo
ainda mais decidido as igrejas que se constroem em seu nome, os
autoproclamados profetas armados e os desarmados, os infalíveis papas
partidários, os mesquinhos sacerdotes de paróquias, a patética adoração
aos mortos e o culto aos santos conhecidos e desconhecidos. A religião
de uma pequena seita não é melhor do que uma religião de Estado. Só é
menos relevante. Para continuar a ser a filosofia insuperável de nossa
época, enquanto nossa época existir, o marxismo deve voltar a ser
profano.
Artigo recebido do professor Irineu Alfredo Ronconi Jr. / Autor e fonte: Alvaro Bianchi em
Nenhum comentário:
Postar um comentário