João Jorge e Jacobina Maurer

João Jorge e Jacobina Maurer

I m A g E m

I m A g E m
O Velho do Espelho

"Por acaso, surpreendo-me no espelho:
quem é esse que me olha e é
tão mais velho do que eu?
Porém, seu rosto...é cada vez menos estranho...
Meu Deus,Meu Deus...Parece meu velho pai -
que já morreu"! (Mario Quintana)

P E S Q U I S A

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

24. A Queda de Nova Paris

Nova Paris caiu num domingo de primavera,
no final de outubro.
Muito foi e continuará sendo
escrito e falado sobre a queda de Nova Paris.
Os comentaristas e cientistas políticos,
os historiadores e os sociólogos
vão se lançar sobre o tema
como abutres sobre a carcaça
e vão elaborar as mais diversas teorias.
Que o façam!!
...
Testemunha ocular das últimas semanas de Nova Paris,
passo a relatar o que vi e vivi sobre a queda.


É uma versão pessoal, engajada e parcial,
escrita no calor da batalha
por alguém que ousou transformar
cada praça e esquina numa trincheira de luta.
Alguém que recusou-se a acreditar
que travava as últimas batalhas 
de uma guerra perdida muito antes.



Um olhar de fora


Conheci Nova Paris
bem antes de nossa chegada ao poder.
Participei das disputas em Nova Paris
quando a maioria da direção do partido era jovem
e saía com gosto de vitória na boca,
mesmo após as derrotas. 
Conheci a velha guarda que,

duas décadas atrás,
ousou conduzir nossos sonhos à realidade.
Em todos esses anos
a experiência de Nova Paris
nos encheu de orgulho e satisfação.
As lágrimas derramadas
nesses vinte anos
foram de emoção e contentamento,
nunca de desencanto ou decepção.

...
Mas não sou de Nova Paris.
Sou um soldado do interior,
onde o exemplo de Nova Paris
foi constante motivo de agitação e propaganda,
uma forte presença
a atemorizar nossos adversários,
uma motivação para a continuidade da luta

e de constantes fustigações
ás administrações tradicionais.

...
Não sabia dos detalhes
da vida em Nova Paris,
ao longo do tempo que governamos,
nem sabia como administrávamos, no dia a dia.
As notícias que sempre nos chegavam
eram animadoras e acreditávamos
que a imensa maioria do povo de Nova Paris
amava e orgulhava-se da experiência
comandada por nossos camaradas.
...
Nos informes que recebíamos

nunca foi mencionado
que em Nova Paris

o comodismo, a burocratização e a arrogância

haviam crescido como a erva daninha 
na estação das chuvas.


O início do fim
 
Sabíamos que nem tudo eram flores.
Nas guerras desses tempos modernos
a vitória não significa a eliminação física
dos adversários e eles continuam,
ano após ano,
eleição após eleição,
buscando formas de nos derrotar.
...
E quando a derrota bateu às nossas portas
o que mais doeu não foi a alegria previsível
no rosto dos nossos adversários.
Doeu mesmo ver
que grande parte do povo
que lutou conosco nos primeiros anos,
comemorava nossa derrocada.
...
Os adversários não vieram de fora
com tanques avançando pelas ruas,
como na Primavera de Praga
ou na Praça da Paz Celestial.
Os mesmos de sempre
lideravam a luta contra nós
e eram apoiados pelos nossos vizinhos,
artistas, pequenos comerciantes
e parcela expressiva dos trabalhadores
que presunçosamente pensávamos representar.

Com a derrota cravada no coração

Tal qual a Canudos de Antonio Conselheiro
à medida que o cerco se fechava
mais gente vinha em socorro a Nova Paris.
Dispostos a resistir
e reverter a qualquer custo
uma derrota anunciada.
...

Não tivemos a recepção esperada,
apesar do carinho e da satisfação do encontro,
chamava nossa atenção
o número reduzido
de soldados da cidade dispostos a lutar.
Na chegada a Nova Paris
descobrimos espantados
que o medo dominava os camaradas.
Nos seus olhos havia temor
em relação ao futuro,
o desalento paralisava suas ações
e impedia a explosão da necessária reação.
...
Quando nas primeiras horas
nos explicaram a situação
que encontraríamos pela frente,
custamos a acreditar.
Disseram-nos das dificuldades
da batalha até aquele momento,
da necessidade de paciência e discrição
evitando enfrentamentos desnecessários

e executando tarefas de apoio
as tropas locais.
Contaram da frustração
de uma grande esperança
de ajuda que viria do Norte.
E do Norte só vieram
nuvens de tempestade
que animavam os adversários.
...


Nos primeiros dias de nossa estada
em Nova Paris houve
questionamentos abertos as lideranças regionais.
Os companheiros que vieram
de diversas regiões para apoiar Nova Paris
tinham, em sua grande maioria,
mais experiência que os dirigentes locais
a quem deviam obedecer.





A esperança esboçou um sorriso



Não aceitamos carregar discretamente
nossos estandartes e ouvirmos,
sem contestar, opiniões cheias de medo,
preconceito e ignorância.
Viemos para o confronto,
para ouvir e contestar, disputar as consciências,
reverter falsos conceitos e opiniões.

...

Viemos para bater e apanhar.
Não aceitamos caminhar por ruas vazias
de bairros fantasmas
onde a burguesia se esconde das próprias culpas.
Queríamos ver a cara do povo,
sentir seu carinho e seu ódio,
xingar e sermos xingados,
pedirmos perdão pela distância
que deixamos nascer
e crescer entre o povo
e aquele que deveria ser seu governo.

...
Agimos acertadamente,
foi bom desobedecermos.
Forçamos um novo acordo
com as direções locais
e tomando as ruas
fomos ao encontro do povo.
A reação do povo foi
quase tão carinhosa como antigamente.
Ao confrontar em plena rua
com um adversário provocador
ou com um trabalhador iludido por eles,
ganhávamos o respeito ou,
pelo menos, a atenção
dos que estavam a sua volta.
...
Nos últimos dias a esperança
chegou a esboçar um sorriso para nós.
Chegamos a pensar
que seria possível a vitória,
que Nova Paris iria resistir
contra tudo e contra todos.
Nas horas derradeiras
ocupamos todos os espaços,
demarcamos nosso território
e festejamos nas ruas.





A noite mais triste e 
mais longa das noites

Mas o inimigo estava convicto
do acerto de sua estratégia.
Não nos enfrentaria nas ruas,
evitaria o confronto aberto.
Unindo todos nossos adversários,
os históricos e os de ocasião
numa grande frente,
consolidou sua posição
onde era forte
e disputou conosco
em nosso território.





Acertou nos detalhes


e bateu onde acusamos
a dor dos golpes.

Dizia-se e mostrava-se igual,
ou muito parecido conosco,

em tudo que fizemos de bom.
Disse que manteria tudo
que tínhamos feito de certo
e foi implacável na denúncia
e no superdimensionamento dos erros
que só eles poderiam mudar.
...
Ressaltaram o quanto
eram parecidos com nós.
Falaram que na grande luta
que se travava no Norte
onde estávamos juntos no mesmo exército.
Foram ouvidos e foram apoiados
por muitos dos que antigamente
estavam conosco aqui no Sul.
...
E assim Nova Paris caiu.
Por uma pequena diferença mas caiu.
E caiu por inteiro
porque não existe meia-derrota.
Na mesma noite daquele dia,
no final de outubro,
saímos de Nova Paris.
Nunca tantos choraram pelas ruas
enxugando nas bandeiras e estandartes
as lágrimas da derrota.
...
Nunca uma curta viagem de retorno
foi tão longa e tão triste.
Nós sentimos na hora
o significado da derrota em Nova Paris
e choramos ao final da luta.
Dentro de Nova Paris,
muitos só foram se dar conta
do que ocorreu nas semanas
e nos meses seguintes
e devem estar chorando até agora.





Nova Paris vive


Esse é o meu relato.
Trata-se das primeiras impressões,
mas busquei retratar
da melhor forma possível
o que ví, ouví e sentí
nos poucos dias de vida
em que fui cidadão de Nova Paris.
Mas não quero que fique,
ao final, uma imagem desoladora,
uma cena de terra arrasada.
O futuro é nosso
e não desses que nos venceram.



Sua energia se consumirá em pouco tempo,
falta-lhes disciplina, ética e coesão interna.
Nós vamos lamber nossas feridas,
tratar os feridos
e honrar a lembrança dos mortos.
Vamos nos fortalecer novamente.
Sabemos que o final do tempo deles
iniciou no primeiro dia.
...
Cada dia para eles será um fardo,
cada promessa descumprida
e cada direito negado será uma luz
iluminando a memória das pessoas.
Aproxima-se o momento
de retomarmos Nova Paris
e de garantirmos, para todos,
o sagrado direito da participação popular
para voltarmos a ostentar aquele jeito
de andar sorrindo nas ruas.
...
As boas sementes,
quando enterradas em solo fecundo,
germinam após a tempestade,
o furacão ou o terremoto.
Voltarei, voltaremos a Nova Paris
e ao lado dos verdadeiros camaradas

vamos ousar lutar
e vamos ousar vencer.

Em breve, muito breve.

Gilnei Andrade, 
primavera de 2004

Nenhum comentário:

Postar um comentário