João Jorge e Jacobina Maurer

João Jorge e Jacobina Maurer

I m A g E m

I m A g E m
O Velho do Espelho

"Por acaso, surpreendo-me no espelho:
quem é esse que me olha e é
tão mais velho do que eu?
Porém, seu rosto...é cada vez menos estranho...
Meu Deus,Meu Deus...Parece meu velho pai -
que já morreu"! (Mario Quintana)

P E S Q U I S A

domingo, 22 de julho de 2018

Sonhar também muda o mundo

        Embora difícil de implementar, a proposta anarquista contou com diversos                                         pensadores e influenciou vários países                                                                                                                               Edilene Toledo   –   1/8/2013

Quem já não sonhou com um mundo diferente, no qual fosse possível o máximo de liberdade com o máximo de solidariedade? Os anarquistas acreditavam, e acreditam ainda, que essa esperança não é uma utopia: ela pode se tornar realidade. Eles gostam de dizer que o ideal existe desde a Antiguidade, ou seja, desde que há luta pela liberdade. Mas a doutrina só se tornaria movimento organizado no século XIX, na Europa. Na pauta, a crítica à sociedade industrial, aos males do capitalismo e à sua indiferença diante do sofrimento humano.
A palavra anarquia, usada frequentemente para designar desordem e confusão, vem do grego e significa “sem governo”, isto é, o estado de um povo sem autoridade constituída. Do mesmo horizonte de significado nasce o anarquismo, doutrina política que prega que o Estado é nocivo e desnecessário e que existem alternativas viáveis de organização voluntária. Para a verdadeira libertação da sociedade seria necessário, ainda, destruir o capitalismo e as igrejas. Os anarquistas opunham-se à participação nas eleições e aos parlamentos, pois consideravam a democracia liberal uma farsa, negando qualquer forma de organização hierarquizada. A nova sociedade seria uma rede de relações voluntárias entre pessoas livres e iguais, em equilíbrio natural entre liberdade e ordem não imposta, mas garantida pela cooperação voluntária. Eliminados o Estado centralizado, o capitalismo e as instituições religiosas, afloraria a verdadeira natureza humana e as pessoas voltariam a assumir suas responsabilidades comunitárias. O futuro anarquista seria feito de um conjunto de pequenas comunidades descentralizadas, autogeridas e federadas, que a livre experimentação modificaria pouco a pouco.
 Proudhon e seus filhos (Gustave Coubert) 
O francês Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) foi o primeiro a organizar as ideias do anarquismo. Em seu texto O que é a propriedade? (1840), escreveu que a política era a ciência da liberdade, que o governo do homem sobre o homem, em qualquer forma, era opressão, e que a sociedade só atingiria a perfeição na união da ordem com a anarquia.  Ainda no século XIX, o anarquismo ganhou adeptos em todo o mundo, reconhecendo-se em um projeto internacional comum, embora em cada país os trabalhadores utilizassem a linguagem e a ação do anarquismo como resposta a seus problemas e preocupações específicos. 
O russo Mikhail Bakunin (1814-1876) defendia que a futura organização da sociedade deveria ser realizada de baixo para cima, pela livre associação. Bakunin e outros anarquistas rivalizaram com Karl Marx, sugerindo que o socialismo seria tão despótico quanto outras formas de Estado. Mais tarde, Emma Goldman (1869-1940), judia russa emigrada para os Estados Unidos, famosa por sua militância, fez duras críticas aos rumos dados pelos bolcheviques à Revolução Russa em função da centralização estatal e do autoritarismo, que teriam paralisado a iniciativa e o esforço individuais.Os anarquistas russos, em aberta oposição ao que consideravam uma ditadura distante dos ideais libertários, passaram a ser perseguidos e suas atividades foram proibidas já poucos meses após a Revolução de Outubro. Em 1920, grande parte dos membros do Exército Revolucionário Insurrecional, liderado pelo anarquista Nestor Makhno, foi fuzilada pela Cheka, a polícia responsável por reprimir atos considerados contrarrevolucionários. Em poucos anos, os anarquistas da Rússia foram quase todos mortos, aprisionados, banidos ou reduzidos ao silêncio.

Diversos outros pensadores influenciaram libertários de várias partes do mundo. A ideia da ajuda mútua como requisito central para a evolução ética da humanidade tornou-se referência através dos escritos do russo Piotr Kropotkin (1842-1921). Na resistência contra o golpe militar de Francisco Franco na Espanha da Guerra Civil, o operário Buenaventura Durruti (1896-1936) afirmava que os anarquistas traziam um novo mundo em seus corações. Victor Serge (1890-1947), nascido na Bélgica, de família russa e polonesa, escreveu em suas memórias que o anarquismo tomava os militantes inteiramente, transformava suas vidas, porque exigia uma coerência entre os atos e as palavras. Para muitos, tinha um caráter de conversão quase religiosa.

Os anarquistas incentivavam a luta dos trabalhadores contra a exploração capitalista através do apelo para diversas formas de ação, como greves, boicotes, comícios, passeatas, fundação de sindicatos, denunciando o que consideravam ações repressoras da burguesia e do Estado. Embora tenha conquistado corações e mentes em diferentes classes sociais, o anarquismo se difundiu, sobretudo entre os trabalhadores pobres urbanos, e foi um elemento importante em seu processo de auto-organização e agregação social, recreativa e cultural. A circulação das ideias anarquistas se dava por meio de campanhas, comícios, pela imprensa e em publicações, mas também com a organização do tempo livre em eventos como teatro, piqueniques e festas. Assim, os anarquistas transformavam, ou ao menos abalavam, uma mentalidade consolidada em vários países, segundo a qual trabalhadores pobres deviam ficar fora da política. Um dos livrinhos mais famosos de propaganda anarquista foi Entre camponesesdiálogo sobre a anarquia, do italiano Errico Malatesta (1853-1932), publicado em Florença, em 1884. Nele se lia a conversa entre dois camponeses, Giorgio, um jovem anarquista, e Beppe, um velho amigo de seu pai. Beppe tenta dissuadir Giorgio, argumentando que a política era coisa para os senhores, e que o trabalhador tinha que pensar em trabalhar e fazer o bem, assim viveria tranquilo e na graça de Deus. No fim, é o velho Beppe quem sai convertido ao anarquismo. Malatesta nasceu no sul da Itália, em uma família rica. Coerente com suas ideias, distribuiu as terras que herdou aos camponeses. Foi um dos anarquistas mais influentes em todo o mundo, inspirando inúmeros militantes e trabalhadores. Por isso foi duramente perseguido pelo regime fascista de Benito Mussolini, desde sua ascensão ao poder em 1922.
Errico Malatesta
Embora os anarquistas concordassem com os objetivos que queriam atingir, eles divergiram muito sobre os meios para alcançá-los. Na década de 1890 houve grandes atos de violência dos anarquistas no cenário mundial: foram mortos um rei da Itália, uma imperatriz da Áustria, um primeiro-ministro da Espanha, um presidente da França e um dos Estados Unidos.  Mas a maioria dos anarquistas recusou essas ações individuais e violentas. Alguns tentaram experimentar a organização libertária formando pequenas comunidades autogeridas que, em geral, tiveram vida curta e difícil. Outros organizaram insurreições. Muitos se dedicaram à formação e à participação nos sindicatos de trabalhadores, que consideravam um espaço privilegiado para a difusão da ideia anarquista e um exercício importante de autogestão. Houve os que investiram na educação, criando escolas alternativas que visavam formar crianças autônomas, e na arte engajada, como o teatro popular e a literatura com conteúdos políticos.

 Milicianos anarquistas de CNT-FAI 
Barcelona, 28 de agosto de 1936. 
No Programa Anarquista, escrito por Malatesta em 1903, ele argumentava que os anarquistas queriam mudar radicalmente o mundo, substituindo o ódio pelo amor, a concorrência pela solidariedade, a busca exclusiva do próprio bem-estar pela cooperação, a opressão pela liberdade. “Queremos que a sociedade seja constituída com o objetivo de fornecer a todos os meios de alcançar igual bem-estar possível, o maior  desenvolvimento possível, moral e material. Desejamos para todos pão, liberdade, amor e saber”, escreveu Malatesta na conclusão do programa. Já nos anos 1920 e 1930, o movimento anarquista perdeu força, com o surgimento dos partidos comunistas e o aumento da presença do Estado nas sociedades ocidentais, fechando o ciclo do chamado anarquismo histórico. Na Espanha, em Aragão e na Catalunha, os anarquistas conseguiram realizar uma verdadeira revolução durante a guerra civil: operários e camponeses se apoderaram das terras e das indústrias, estabeleceram conselhos de trabalhadores e fizeram a autogestão da economia. Essa coletivização teve considerável sucesso por algum tempo e, embora derrotada, foi a experiência anarquista mais importante da história e ficou na memória dos libertários como a prova concreta de que a anarquia era possível.
Á partir dos anos 1960, quando se confirmaram suas previsões sobre os perigos da centralização do poder nos países socialistas, houve uma retomada do anarquismo em todo o mundo. Suas ideias libertárias influenciaram movimentos sociais, como o estudantil, o feminista, o ecológico e o hippie, penetrando com força também nas universidades. Em tempos de contestação do capitalismo e da capacidade dos governos de representar suas sociedades, os ideais anarquistas parecem mais vivos do que nunca.
Edilene Toledo é professora da Universidade Federal de São Paulo e autora de Anarquismo e sindicalismo revolucionário: Trabalhadores e militantes em São Paulo na Primeira República (Fundação Perseu Abramo, 2004).  

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