João Jorge e Jacobina Maurer

João Jorge e Jacobina Maurer

I m A g E m

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O Velho do Espelho

"Por acaso, surpreendo-me no espelho:
quem é esse que me olha e é
tão mais velho do que eu?
Porém, seu rosto...é cada vez menos estranho...
Meu Deus,Meu Deus...Parece meu velho pai -
que já morreu"! (Mario Quintana)

P E S Q U I S A

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Entrevista com combatente brasileiro em Rojava

Em janeiro o Comitê de Solidariedade à Resistência Popular Curda de São Paulo entrevistou Bal Dilsoz, brasileiro que está combatendo junto aos povos de Rojava e outros internacionalistas no Norte da Síria. Confira a seguir:
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Comitê: Qual o seu nome ou como podemos te chamar?  Bal Dilsoz:  Meu nome é Baz Dilsoz, mas pode me chamar de Heval Baz.
Comitê: Desde quando você está em Rojava?   Baz: Desde o ano passado (2016).
Comitê: Você se envolvia em política no Brasil? Segue alguma linha ideológica definida? Baz: Militei em um partido por quase seis anos, hoje estou num limbo ideológico entre o distributismo de esquerda e o Apoismo (segue teoria desenvolvidas por Abdullah Öcalan, conhecido como Apo entre os curdos).
Comitê: Qual o motivo que te levou a combater por Rojava? Baz: Por que aqui é a maior experiência revolucionária do nosso tempo, e por causa da monstruosidade do estado islâmico e da República da Turquia.
Comitê: Você concorda com o projeto do confederalismo democrático? E qual importância vê no que está acontecendo em Rojava atualmente? Baz: Sim, concordo e acho uma pena que no Brasil não se conheça essa corrente política. Pra mim, Rojava representa a esperança de um mundo melhor na nossa geração.
Comitê: Pode falar um pouco sobre seu time e batalhão e onde atuou. Baz: Passamos por vários Tabur (batalhão) aqui, entre infantaria ligeira, armas pesadas e logística. Trabalho não falta.
Comitê: O que você e seus companheiros esperam para o futuro próximo, na Síria e internacionalmente? Baz: Esperamos a democratização da Síria e sua unidade no federalismo, a derrota do fascismo de Erdogan e vemos com esperança as agitações revolucionárias em diversas partes do globo.
Comitê: Muitos internacionalistas atuam em Rojava também com o intuito de trazer acúmulo revolucionário para seus locais de origem, pode falar sobre isso e se acredita que parte dessa experiência pode se internacionalizar e aproveitada em um país como o Brasil. Baz: É verdade. Muitos de nós queremos adaptar as experiências daqui em nossos países de origem. O confederalismo democrático não está confinado ao Curdistão, pelo contrário, é um projeto pro mundo todo. Ele trás soluções diretas aos problemas causados hoje pelas nações-estados, e tem sobrevivido às provações práticas.
Comitê: Você aprendeu kurmanji, como se comunica?  Baz: Entre os estrangeiros falamos em inglês, geralmente. Mas todos aprendemos um pouco de Kurmanji. O quanto vc aprende depende somente da sua dedicação: tem hevalên que em três meses já conversam com os curdos, e tem outros que passam dois anos aqui e só falam "roj baş".
Comitê: Quais são as condições materiais dos locais onde vocês atuam hoje, existe dificuldades com alimentação, água potável, medicamentos e que tipos de restrições vocês sentem devido ao embargo do KRG, exemplo? Baz: Os soldados da logística do YPG são verdadeiros heróis, eles não deixam faltar nada para nós. Equipamentos, água, comida e remédios estão sempre disponíveis, mas por causa do embargo, a qualidade nem sempre é das melhores. O KRG é uma associação de criminosos, capangas de Erdogan. Seu objetivo agora é derrubar o governo revolucionário e colocar em seu lugar outra marionete do ocidente. Bom, que tentem, nós somos madeira que cupim nenhum pode furar.
Comitê: O que mais te chamou atenção nesse período? Baz: A consciência dos curdos sobre a revolução. Impressiona, só estando aqui pra saber.
Comitê: Chegou a participar de ações militares junto com combatentes mulheres? Baz: Sim, e acredite, elas são o demônio! O papel delas na luta é decisivo, são combatentes espetaculares.
Comitê: Se puder nos relatar algum acontecimento que teve junto com seu tabur pra tentarmos entender um pouco do que passa por aí. Baz: No front 103% do tempo é tédio, com 4% de margem de erro. A maior parte do tempo se faz trabalho de sentinela, se estuda e se toma chá. Mas, ao nascer e ao pôr do sol, a cobra fuma.
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“A revolução de Rojava é uma revolução das mulheres” –      Melike Yasar

Tradução: Comitê de solidariedade aos povos do Curdistão-RS.
Um silêncio forte, mas sutil é implantado durante meses sobre o Curdistão, especificamente na região de Rojava fronteira norte com a Síria e a Turquia. Os combates entre as milícias guerrilheiras da Unidade Proteção Popular (YPG / YPJ) e os mercenários do Estado Islâmico (EI) continua nas aldeias e cidades. Quando em janeiro de 2015 as forças EI foram expulsas da cidade curda de Kobanî, um processo de aprofundamento da revolução começou naquela região. 
Sob a liderança do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), o norte da Síria prevê uma nova forma de fazer política. Claro, a grande mídia silencia este fato de forma sistematicamente. Para a grande mídia, a parafernália militarista de coalizão (CI), liderada pelos Estados Unidos que bombardeia a área é muito mais atraente do que a organização de pessoas de diferentes nacionalidades que vivem em Rojava.
Melike Yasar, representante do Movimento Internacional de Mulheres curdas (MIMK), falou com o Marcha, sobre um processo aberto e em construção e, como ele se desenvolve no Curdistão sírio. O papel fundamental das mulheres para construir a revolução, a influência da vitória nas outras regiões curdas e, o futuro do Oriente Médio foram alguns dos temas discutidos.
A força das mulheres
Na linha de frente de combate estão elas. Os meios de comunicação às demonstram radiantes, quase como modelos de publicidade. Outras mídias, de redução deliberada e direta. As mulheres curdas, com seus rifles sobre os seus ombros, são uma parte fundamental de uma revolução. 
Yasar resume: “A revolução é uma revolução Rojava mulheres. A liberdade das mulheres está no cerne do paradigma do sistema Confederal. A resistência das mulheres em Rojava não começou agora, mas é o resultado da luta de muitos anos.” Assim, a referência de MIMK resume a importância das mulheres na implementação do Confederalismo Democrático em Rojava, a ideologia que rege o PKK (PYD, no norte da Síria) e que coloca em um duro questionamento as linhas políticas clássicas do Oriente Médio.
“A liberdade das mulheres significa liberdade para o povo”, diz Yasar-. Antes do proletariado, as mulheres foram o primeiro setor social oprimido. Todos os movimentos sociais e as revoluções do século XX defendeu o direito das mulheres, mas deixavam a solução para após a revolução. “Para o movimento curdo, isso foi como uma lição, ele analisou todas as revoluções e, definiu que o problema da mulher, será resolvido dentro da revolução e não após a revolução.”
Referindo-se Rojava, Yasar diz que apenas 10% das mulheres estão lutando contra o Estado islâmico e, o restante é dedicado à política e a construir uma nova sociedade, no meio de uma feroz guerra de agressão. “Em Rojava as mulheres foram às forças que armaram o sistema confederal, não somente com a luta armada em si. 
O mundo só conhece a luta armada das mulheres curdas, mas essa não é a única realidade. O mundo deve saber que as mulheres que têm armas em suas mãos é como estivessem segurando uma caneta também. A força das mulheres foi a mudança fundamental no Curdistão “.

Rojava hoje
Reconstruir um território devastado. Essa é a premissa do movimento curdo no norte da Síria. E reconstruí-lo com base no anti-estatismo, comunitarismo e na inclusão democrática do povo. Tarefa difícil, mas que ainda está de pé em Rojava. Para Yasar, “após a vitória em Kobanî, nas aldeias e em todos os movimentos há muitos mais esperança. Da mesma forma, ainda há muitos conflitos e guerras e, a ameaça ainda não desapareceu “.
A representante curda garante que todos os países do Oriente Médio “tem um plano diferente para Rojava”, enquanto o EI “não é um movimento que luta apenas contra os curdos, mas é uma organização criada pelos países capitalistas para reordenar a região ao seu gosto.” “Isso mostra que o Estado islâmico não só luta contra os curdos, mas que luta para destruir o novo sistema nascido em Rojava.”
“As pessoas tem consciência deste novo modelo e o defende com toda força, porque é o único modelo que elas e eles podem se sentir livre e que este pertence a eles”, diz Yasar referindo-se a Confederalismo Democrático. “Você tem que saber e ser claro que este modelo é anti-capitalista, por isso os países capitalistas tentarão destruí-lo”, diz ela. 
Ela acrescenta: “O Confederalismo Democrático não se constrói após a guerra, mas na guerra. Quando a guerra civil começou na Síria a primeira coisa que fizemos foi tirar os homens de Assad para construir esse sistema em Rojava. Esse modelo é o terceiro caminho, nem com o regime de Assad e nem com os grupos terroristas. O povo curdo sabe que trouxe esse novo modelo democrático com respeito as mulheres, jovens e para todas as pessoas.
Muito antes de Rojava se declarar autônoma em 2013, o movimento curdo construiu o germe do que se esta vendo agora. “Para que possa funcionar- explica Yasar-, nos bairros se fazem seminários para informar sobre este sistema, que se baseia em que todos os povos possam viver juntos. Nos bairros, nas aldeias, nos campos foram construídas assembleias. Dentro deste sistema, a liberdade das mulheres é uma importante guia. As mulheres colocaram uma dinâmica neste sistema e isso deve ser visto como consequência da luta do movimento curdo por 40 anos.
O impacto no Oriente Médio
“O povo do Oriente Médio, especialmente nos últimos anos, está vivendo uma cultura de resistência com a qual eles querem mudar o sistema em que estão vivendo”, diz Yasar. Sem dúvida, na região cresce as brigas internas e a interferência dos EUA. Os confrontos entre regimes mais ortodoxos, como a Arábia Saudita e Turquia, com Irã e Síria marcam os últimos tempos. No meio, o povo curdo procura seu destino.
Os povos do Oriente Médio “desejam modificar os regimes atuais, mas ainda não há alternativa própria - remarca a representante da MIMK-. A resistência do povo do Oriente Médio provocou respeito, mas nos exemplos da Líbia, Tunísia e Egito havia falta de alternativa. Portanto, o modelo Rojava dá muita esperança a muitos povos do Oriente Médio, esperança que um novo sistema pode ser construído. Os Estados sem dúvida não vão aceitar, porque este projeto é de um sistema é anti-Estado.”
Yasar afirma que “em Rojava não foi simplesmente aproveitar o momento, mas que o sistema já tinha uma base. Não podemos negar que a guerra civil na Síria nos deu a chance de colocar para funcionar o sistema, mas também para defender esta terra, porque naquela época os curdos necessitavam muito dela. Sabíamos que as decisões que tomariam os países imperialistas podiam afetar negativamente o povo curdo, mas, a vitória em Rojava afetou ainda mais e de forma positiva a todos curdos”.
As incógnitas sobre o que vai acontecer no Curdistão sírio e sua influência na região permanecem latentes. Algo de novo parece emergir no Crescente Fértil, mas perigos espreitam ao redor e contradições. Até agora, a maior defesa da revolução de Rojava é dada pelas próprias pessoas que vivem nesse solo. O poder para consolidar este processo irá definir o futuro.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Como funciona a engrenagem das notícias falsas no Brasil

"A venda da publicidade costuma ser feita por agências especializadas ou via ferramentas como o Google AdSense, que seguem a lógica de um leilão: o site diz o preço mínimo que pretende receber por anúncio e qual modalidade prefere, sendo as mais comuns CPM (custo por mil impressões, que considera o número de visualizações) e CPC (custo por clique, em que o pagamento é calculado em cima de quantas vezes o anúncio foi clicado)".

Ilustríssima FSP
FABIO VICTOR  19/02/2017  02h00


Como funciona a fábrica de títulos sensacionalistas e inverdades que se disseminam nas redes sociais. Sites faturam de acordo com a audiência, que conteúdos apelativos impulsionam. Pesquisas mostram que a maioria dos leitores tem dificuldade em distinguir boatos de informações confiáveis.

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Leticia Provedel já tinha Beto Silva entre seus contatos telefônicos e recebia dele correntes e outras bobagens que costumam circular num aplicativo de celular. Especialista em propriedade intelectual e advogada de Gilberto Gil, ela conversara com Beto por telefone duas vezes, em 2015 e em 2016, para avisá-lo de que seria processado caso não retirasse do ar inverdades sobre o cantor publicadas no site Pensa Brasil. Beto, dono do site, pagou para ver. Às vésperas do Natal passado, o Pensa Brasil publicou uma notícia com o título "Lula lutou muito pelo Brasil, não merecia esse juizinho fajuto, diz Gilberto Gil", ilustrada com uma foto do artista. O "juizinho fajuto", dizia o texto, era Sergio Moro. Como jamais afirmara aquilo sobre o magistrado da Lava Jato, Gil entrou na Justiça contra o Pensa Brasil e o Facebook. Pedia a retirada imediata de todos os links e compartilhamentos da notícia falsa.
Citando decisão do ministro Herman Benjamin, do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual "a internet é o espaço por excelência da liberdade, o que não significa dizer que seja um universo sem lei e infenso à responsabilidade pelos abusos que lá venham a ocorrer", o juiz Carlos Saraiva, do Rio de Janeiro, deferiu o pedido de Gil. A liminar saiu numa sexta, 23 de dezembro de 2016. No dia seguinte, o conteúdo foi removido. Gil decidiu manter uma ação de indenização por dano moral.
Essa e outras notícias falsas sobre críticas do cantor a Sergio Moro haviam chegado ao conhecimento do juiz da Lava Jato. Quem se encarregou de desfazer a mentira foi o jornalista Jorge Bastos Moreno, amigo de Gil, ao final de um evento público com o juiz. Admirador da obra do cantor baiano, Moro gostou de saber. Ao receber a decisão da Justiça do Rio, Beto alegou que apenas reproduzira o conteúdo de um site parceiro.

TEIA

Em entrevista à Folha, o dono do Pensa Brasil deu outra versão: disse que três fontes, todas representantes de movimentos pró-impeachment de Dilma Rousseff (PT), haviam visto um show de Gil em que ele dissera a tal frase contra Moro. "Buscamos de todas as formas, mas não conseguimos um vídeo desse show." Alberto Júnio da Silva, 37 anos, vive em Poços de Caldas, sul de Minas, onde é conhecido como Beto Silva - ou Beto Louco - o apelido, ele diz, foi dado pela "coragem de denunciar" problemas da cidade.
Beto é hoje o integrante mais ativo e barulhento de um trio que se formou em Poços e logo alçou a nível nacional o negócio do grotesco nos meios digitais. Seus sites integram uma teia de páginas que disseminam pela internet informações falsas e/ou de teor sensacionalista – uma pandemia conhecida no mundo todo sob o rótulo de "fake news" (notícias falsas) e que passou a chamar a atenção devido a sua influência em votações no Reino Unido e nos EUA, no ano passado.
Luciano Vieira e Luciano Moura são os outros integrantes do trio, que se uniu no início desta década em torno da marca Pensa Poços. Criada para tratar de temas da cidade, já batizou um jornalzinho, uma webrádio e uma página no Facebook –que hoje Beto toca sozinho, após o grupo ter rachado.

Pensa Brasil, Brasil Verde e Amarelo, Diário do Brasil, Folha Digital, Juntos pelo Brasil, Jornal do País, Saúde, Vida e Família, Você Precisa Saber, Em Nome do Brasil, Folha de Minas, The News Brazil e Na Mira da Notícia são sites que estão ou estiveram recentemente no ar com características semelhantes. 

Foram criados por membros do trio ou por alguém próximo a ele – em alguns casos, um deles registrou o domínio e cedeu para parceiros desenvolverem os sites. Se há problemas com uma página, ela é fechada, e logo reaparece sob um novo endereço.
"É preciso talento até para criar um domínio", comenta Vieira, que tocava o Brasil Verde Amarelo até janeiro, quando, segundo conta, o Google lhe informou que ele perdera sua conta por violar políticas de conteúdo da empresa. Ele atribui o revés ao espalhafato do ex-parceiro Beto, a quem dirige termos pouco amistosos.
Vieira, que hoje vive em Lavras (MG), mantém uma página do Brasil Verde Amarelo no Facebook e está associado aos sites Jornal do País (disse que o domínio é dele, mas que amigos cuidam da página, na qual há várias postagens em seu nome) e Juntos Pelo Brasil (afirmou que não é dele, mas aparece no expediente como diretor e atende o celular registrado na página). A reportagem não conseguiu contato com Luciano Moura. 

Na eleição presidencial de 2014, ele teve seus 15 minutos de fama quando a campanha de Aécio Neves, candidato pelo PSDB, acionou o Ministério Público para investigar o site Poços 10, que atacava o tucano e a família dele. Moura era um dos autores do site – que não existe mais – e fazia a página de um vereador petista da cidade. As ações de Beto Silva e da rede de Poços de Caldas, contudo, não se guiam exclusivamente por motivos político-ideológicos. Na cidade, o Pensa Poços já atacou (e defendeu) políticos de todos os matizes. A teia abriga páginas explicitamente de direita (como era o Brasil Verde e Amarelo), outras pró-Lula e pró-PT (caso do Em Nome do Brasil) e ainda outras que atiram para todos os lados.
O Pensa Brasil, maior site de Beto, está nesse último segmento. Costuma ser rotulado como de direita e prosperou com a debacle petista, mas volta e meia ataca Aécio e o governo Temer (PMDB). O que une esses sites é a busca por cliques. No mundo digital, clique é dinheiro. E, quanto a isso, o Pensa Brasil de Beto Silva não vai nada mal.
                                                                                                                                                                                                    


ANÚNCIOS

Sites lucram com a venda de anúncios. Quanto maior a audiência da página, mais ela ganhará com publicidade. Segundo a empresa comScore, que mede audiência digital, o Pensa Brasil teve em dezembro passado 701 mil visitantes únicos, com média de três páginas vistas por visita (ou seja, 2,1 milhões de páginas vistas/mês). Jornal mineiro mais acessado na web, o "Estado de Minas" teve no mesmo mês 2 milhões de visitantes únicos e 16 milhões de páginas vistas.
A comScore registra que, em março de 2016 – mês da maior manifestação pró-impeachment e da condução coercitiva do ex-presidente Lula -, o Pensa Brasil alcançou 3,2 milhões de visitantes únicos e 10,7 milhões de páginas vistas. A turbulência política de 2016, aliás, foi uma "era de ouro" da audiência digital, da qual os sites de notícias falsas se beneficiaram à larga.
Beto Silva não quis dizer quanto ganha com o Pensa Brasil. Profissionais do mercado publicitário consultados pela reportagem estimaram que os anúncios do site rendam de R$ 100 mil a R$ 150 mil por mês, dos quais até 50% ficariam com o intermediário e o restante com o dono do site.
A venda da publicidade costuma ser feita por agências especializadas ou via ferramentas como o Google AdSense, que seguem a lógica de um leilão: o site diz o preço mínimo que pretende receber por anúncio e qual modalidade prefere, sendo as mais comuns CPM (custo por mil impressões, que considera o número de visualizações) e CPC (custo por clique, em que o pagamento é calculado em cima de quantas vezes o anúncio foi clicado).
Os anunciantes definem o perfil de público que querem atingir, mas não controlam em que site a propaganda será veiculada. A audiência é o principal requisito para quem anuncia; no caso de sites de notícias, não costuma haver verificação sobre a credibilidade do veículo ou a qualidade da reportagem. Em geral sob títulos berrantes, com notícias que embaralham verdade e mentira, o Pensa Brasil e seus similares se retroalimentam, com ajuda de páginas e perfis criados por seus donos no Facebook.

Em 6 de fevereiro, por exemplo, três dias depois da morte da ex-primeira dama Marisa Letícia, o Pensa Brasil publicou uma notícia com o título "Marisa fotografada na Itália. Morte da mulher de LULA é mentira, ENTENDA!".  O texto dizia: "Sem barreiras na internet e redes sociais, tanto notícias verdadeiras como falsas podem se espalhar rapidamente. Após a morte da esposa de Lula, Marisa Letícia, espalhou-se uma notícia de que a mesma não estaria morta (boato). Isto! Está [sic] correndo boatos de que Marisa esteja viva e foi flagrada recentemente na Itália". Em seguida, apresentavam-se detalhes da mentira, publicada dois dias antes pelo site Saúde, Vida e Família, sob o título "Marisa é fotografada na Itália e médicos contestam farsa de morte com caixão lacrado!!!". Este texto trazia o crédito "via agência de notícias".
No mesmo dia 6, logo após o Pensa Brasil publicá-la, a notícia falsa foi compartilhada no Facebook por várias das páginas ligadas a Beto Silva, por ele próprio e por perfis com indícios de serem falsos, como o de uma certa Debora Tavares Frayha, que só compartilha páginas do Pensa Brasil e é identificada como funcionária da Folha de Minas (que não existe, mas cujo domínio era de Beto Silva). E também por leitores reais.  
Outros títulos publicados nas últimas semanas pelo Pensa Brasil: "Donald Trump manda recado: '-Brasileiros, a Europa não precisa de visto, vão pra lá'" (3.fev); "DEA-USA e INTERPOL 'estariam' investigando Aécio Neves por tráfico internacional de drogas" (8.jan); "Advogado que desacatou Sergio Moro pode ir preso ainda hoje junto com Lula" (13.dez). Nenhuma delas apresentava elementos factuais que comprovassem a manchete.

NY, POÇOS

A maioria dos sites sensacionalistas é registrada fora do país, não identifica os autores dos textos e não publica expediente, endereço ou telefone para contato. O Pensa Brasil segue a cartilha quase à risca. Na seção Quem Somos, diz estar registrado no Arizona (EUA), avisa que "qualquer pessoa que se sinta ofendida" deve entrar em contato por e-mail e reproduz trechos da Constituição sobre acesso à informação, resguardo do sigilo da fonte e liberdade de expressão.  Numa exceção ao jogo de sombras, há, num canto da página, sob a mensagem "Envie sua notícia por WhatsApp", um celular de Poços de Caldas. 
Quem atende é Beto Silva. Na primeira ligação, logo no começo de uma conversa que se estenderia por uma hora e 40 minutos, Beto afirmou que estava em Nova York e que só voltaria ao Brasil dali a 15 dias. Seis dias depois, sem aviso, viajei a Poços de Caldas. No térreo de um edifício de escritórios no centro da cidade, está a sala que serve de base ao Pensa Brasil e ao Pensa Poços. Beto Silva estava sentado numa mesa diante de dois grandes monitores conectados à internet. Deu-se o seguinte diálogo:

"Oi, Alberto, bom dia. Sou o Fabio, da Folha de S.Paulo, tudo bem?"
"Ôpa, tudo bem?"
"Então você já voltou de Nova York. Voltou antes."
"Voltei. Voltei... que dia é hoje mesmo?"
"Hoje é terça."
"Terça. Eu voltei no domingo. Tinha muita coisa pra resolver aqui."


Conversamos por mais uma hora e meia. Beto Silva é magro e baixinho – tem cerca de 1,60 m. Seu rosto às vezes lembra o do cantor Chico Science (1966-1997), noutras o do ex-jogador Ronaldo Fenômeno. Estava, como sempre aparece em vídeos e fotos, de boné, corrente no pescoço e relojão dourado. Quando era mais jovem, relata, foi vocalista da banda de pagode Nascente do Samba - no Youtube, é possível vê-lo cantando e chacoalhando um afoxé. Diz ter brevê de piloto privado de monomotores. Gesticula muito enquanto fala, volta e meia cruza os braços ou os põe para trás, segurando a cabeça com as mãos, e tem expressões faciais intensas. Nas duas entrevistas, por telefone e ao vivo, expôs suas ideias sobre comunicação e defendeu seu método de trabalho.

"A questão é atrair, é o sensacionalismo. A mídia dos EUA e da Europa é muito sensacionalista. O problema é que, no Brasil, os pequenos sites se aventuraram a navegar pelo marketing digital para ganhar uma grana e começaram a sobressair em relação às grandes mídias, simplesmente por copiar o modelo de fazer notícia de uma forma sensacionalista", afirma. "O que fazemos são modificações [sobre o noticiário] para tornar a notícia mais fácil e interessante", diz Beto. "Quem tem de saber o que é verdade ou mentira é quem lê a matéria."
"Acredito que a verdade não existe. Isso é o meu ponto de vista. Existe o ponto de vista da Folha, cada um tem o seu. Quantas vezes os veículos de comunicação no Brasil tiveram que se retratar? Porque não existe uma verdade absoluta (...). A não ser que vire uma ditadura, em que a grande imprensa diga o que pode ou não." E assegura: "Todas as pessoas que procuraram o Pensa Brasil, quando a matéria não era verdadeira, nós retiramos ou nos retratamos. Aí você vai falar: 'Ah, mas depois que se publica já há um grande dano'. É, a gente corre esse risco. Todo mundo corre. Somos passíveis de erros". "O problema vai ser de quem está me tachando de 'fake news'. Minha preocupação é com meus milhares de leitores - eles é que me dão o feedback correto." "Tudo é business, tudo é dinheiro. Ninguém faz isso para contar historinha. Folha de S.Paulo, 'Veja', 'Globo', ninguém faz matéria porque gosta, é atrás do dinheiro que todo mundo tá correndo."

Durante as entrevistas, Beto também relativizou a verdade. Disse que é formado em Comunicação Social/Publicidade pela Faculdade Anhanguera de Campinas e que tem pós-graduação em marketing digital pela mesma escola. Procurada, a faculdade respondeu: "Não podemos confirmar que ele tenha sido aluno da instituição, pois não encontramos o seu nome no sistema da Anhanguera".
Afirmou que o Pensa Brasil assina agências de notícias, entre as quais a Reuters e a Folhapress, do Grupo Folha, que edita a Folha. Consultada, a Reuters informou que não há entre seus assinantes ninguém com o nome dele, tampouco seu maior site ou a Artpubli Comunicação, empresa registrada em nome da mulher dele. A Folhapress afirmou que Alberto Silva chegou a assinar a agência, mas nunca pagou mensalidades, e por isso o serviço foi bloqueado.
Beto disse também que o Facebook não responde nem por 20% da audiência do Pensa Brasil. Já a empresa de medição de audiência SimilarWeb registra um peso enorme desta rede: 60% da audiência do site vem de redes sociais e, neste universo, 97% vem do Facebook.

'RECEITA DO BOLO'



Não chega a ter 10m² a sala onde fica o QG do Pensa Brasil em Poços de Caldas. Além da mesa de Beto com os monitores, há outra com três laptops. Durante a entrevista, duas jovens que trabalham com ele, ambas na faixa dos 20 anos, voltaram do almoço. Pedi para entrevistá-las, mas Beto não permitiu. Argumentou que as moças, assim como outras duas com quem se revezam, são prestadoras de serviço e que, ademais, não poderia "dar a receita do bolo". Beto –que ressalta não ser produtor de conteúdo, mas "propagador"– diz contar com uma rede de colaboradores por todo o país.
Em sua própria cidade, Beto é capaz de enxergar a verdade absoluta. Na página do Pensa Poços, que define como um trabalho "100% de cidadania", posta vídeos com cobranças e denúncias inflamadas sobre problemas municipais. Num deles, afirmava ser "mentira deslavada" a manchete de um jornal local e acusava um vereador de "esconder a verdade do povo": era 1º de fevereiro último, mesmo dia em que Beto me disse que estava em Nova York, sendo que no vídeo ele brandia um exemplar do diário poços-caldense.
O tom estridente trouxe complicações na Justiça. Além da ação envolvendo Gilberto Gil, pelos menos outros três processos de indenização por dano moral foram abertos contra Beto Silva e parceiros – em dois deles ele já foi condenado. "A linha de conduta dele [Beto] é complicada. Ele trabalha com o propósito de denegrir alguém para depois chantagear. Quis fazer isso comigo, tentou me extorquir, saí fora, não tenho mais relação", disse Paulinho Courominas, ex-prefeito de Poços (pelo PPS, hoje no PSB). Beto nega a extorsão. Conta que, a convite de Paulinho, trabalhou na campanha estadual de Pimenta da Veiga (PSDB) ao governo de Minas em 2014 e que, por não ter sido remunerado pelo serviço, entrou com uma ação trabalhista contra o político local, mas perdeu. O ex-prefeito diz que Beto foi voluntário. Na cidade, Paulinho é apontado como um entre vários políticos a quem o grupo do Pensa Poços já foi fiel e com quem depois rompeu.

MACEDÔNIA

De uma perspectiva global, e com alguma licença poética, poderia se dizer que Beto Silva habita uma espécie de Macedônia tropical.
Veles, uma cidade de 43 mil habitantes (Poços tem 165 mil) no pequeno país dos Balcãs, ganhou fama no ano passado com a revelação de que se tornara um bunker de sites de notícias falsas sobre as eleições dos EUA. Tocados por adolescentes em busca do dinheiro de anúncios, os sites inventaram notícias sensacionalistas (em geral pró-Donald Trump) e geraram milhões de engajamentos (soma de curtidas, compartilhamentos e comentários) no Facebook, integrando um movimento que, para muitos, teve peso relevante na vitória do republicano.

Segundo um estudo do site BuzzFeed, as 20 notícias falsas sobre a eleição americana com maior engajamento no Facebook nos três meses que antecederam a votação geraram mais engajamentos (8,7 milhões) que as 20 notícias reais com mais reações publicadas por grandes veículos (7,3 milhões). O BuzzFeed brasileiro chegou a resultado semelhante em relação a notícias sobre a Lava Jato publicadas em 2016: as dez falsas com mais engajamento no Facebook (3,9 milhões) superaram as dez verdadeiras (2,7 milhões) –no "top ten" das notícias falsas, há quatro da turma de Poços, três das quais do finado Brasil Verde Amarelo e uma da extinta Folha Digital.

A pedido da Folha, o Monitor do Debate Político no Meio Digital, da USP (Universidade de São Paulo), mediu o engajamento de notícias no Facebook durante três momentos de 2016: a aprovação do impeachment de Dilma no Senado, a prisão do ex-deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e a provação em primeiro turno da PEC 241, que fixou um teto para o crescimento dos gastos públicos federais. Os sites de notícias falsas são minoritários no ranking das com maior engajamento – das páginas da teia de Poços, só o Diário do Brasil aparece.

Pesquisa do Instituto Reuters para o Estudo do Jornalismo mostra que cada vez mais brasileiros de grandes centros urbanos usam redes sociais como fonte de notícias: eram 47% em 2013, índice que saltou para 72% em 2016.

Nos EUA, estudos recentes relativizam a influência das "fake news" na eleição de Trump. Um deles, do centro de pesquisa NBER (Birô Nacional de Pesquisa Econômica), concluiu que as mídias sociais tiveram papel "importante, mas não determinante". Foram apontadas como fonte de informação mais importante por somente 14% dos americanos (contra 57% da TV, por exemplo). Ainda assim, o fenômeno preocupa. "É fato que essas notícias falsas geram bastante engajamento no Facebook e que, segundo pesquisas, as pessoas estão propensas a acreditar nelas. Isso é surpreendente e constrangedor, e por isso espera-se que algo seja feito", disse à Folha Craig Silverman, editor de mídia do BuzzFeed norte-americano, estudioso do tema e autor de uma das principais reportagens sobre "os garotos da Macedônia".
Para ele, "qualquer atitude só será eficiente se atacar as vantagens financeiras de criar notícias falsas – e deve incluir as empresas que fornecem as plataformas que estão sendo usadas para criá-las e espalhá-las". De fato, corporações digitais e empresas de mídia em todo mundo começaram a se mexer.

ENCRUZILHADA

Um dos maiores desafios do percurso, observa Silverman, é "assegurar que qualquer medida tomada para coibir notícias falsas não afete a liberdade de expressão". É uma preocupação semelhante à de Patricia Blanco, presidente do Instituto Palavra Aberta, organização dedicada à promoção da liberdade de expressão. "Como garantir uma web livre e evitar que ela seja usada de forma criminosa é algo que temos de resolver. Mas não podemos deixar que o legislador, para proteger cidadãos, crie limites à liberdade de expressão."
Sancionado em 2014, o Marco Civil da Internet isenta de responsabilidade a empresa que abriga o conteúdo. Mas, segundo Leticia Provedel, advogada de Gilberto Gil, redes como o Facebook "têm obrigação de retirar do ar, se notificadas, a calúnia, a injúria ou a difamação, sob pena de conivência".
Vítima de notícias falsas, o jornalista e ativista Leonardo Sakamoto, da ONG Repórter Brasil e blogueiro do UOL, considera que, dada a extensão do problema, é necessária uma convenção global para regular a circulação de notícias na internet e a eventual responsabilização por excessos.
No ano passado, Sakamoto foi alvo de um texto difamatório abrigado no site de notícias falsas Folha Política (sem relação com a Folha). Segundo sugeriram documentos produzidos por ordem judicial, as empresas JBS e 4Buzz promoveram a exposição do texto por meio de anúncio pago no Google –elas negam. Autor do livro "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (Leya), o blogueiro defende também, como solução a médio prazo, uma "alfabetização midiática": a introdução, nos ensinos fundamental e médio, de noções sobre como detectar argumentos fraudulentos.
Soa bem atual. Um estudo do Instituto Paulo Montenegro e da ONG Ação Educativa mostrou que apenas 8% dos brasileiros em idade de trabalhar (entre 15 e 64 anos de idade) são capazes de se expressar por textos, de opinar sobre argumentos e interpretar tabelas e gráficos.
Nos EUA, pesquisa da Universidade Stanford com alunos de ensinos fundamental e médio e de faculdades revelou que a maioria é incapaz de diferenciar notícias produzidas por fontes confiáveis de anúncios e informações falsas. O historiador norte-americano Robert Darnton, professor emérito da Universidade Harvard, diz se opor a qualquer medida que envolva censura e sugere que, "a médio ou longo prazo, isso [o consumo indiscriminado de mentiras] acaba, se autocorrige; se melhorar a política, isso melhora também".
Darnton lembra que a disseminação de notícias falsas não é novidade. Já no século 6, conta, o historiador Procópio escreveu um texto secreto, chamado Anekdota. "Ali ele espalhou fake news, arruinando a reputação do imperador Justiniano e de outros. Era bem similar ao que aconteceu na campanha eleitoral americana."

FIDELIDADE AO GRUPO

Em artigo recente, a pesquisadora americana Judith Donath, do Centro Berkman Klein para Internet & Sociedade da Universidade Harvard, escreveu que, na era das redes sociais, não se compartilha e curte notícias apenas para informar ou persuadir, mas "como um marcador de identidade, uma forma de proclamar sua afinidade com uma comunidade particular". Interagir com uma notícia falsa, argumenta, pode enfurecer os de fora dessa comunidade, mas é um "sinal convincente de fidelidade ao seu grupo".
A psicanalista e jornalista Maria Rita Kehl lê de outro modo. "Como não sabemos o que fazer com algumas notícias que nos chocam, ética ou moralmente, passamos adiante com a sensação de estar participando, de alguma forma, da esfera pública. No fundo não é muito diferente da dona de casa que ouve uma fofoca e corre para o muro, a contar para a vizinha", afirma.
"A diferença", acrescenta, "é que o 'muro' hoje é a internet, e a fofoca que a vizinha quer passar adiante chega a milhares de pessoas. O que torna o problema mais complexo é que o mesmo dispositivo que serve para espalhar notícias falsas e arruinar a imagem de pessoas públicas, também serve para mobilizar campanhas de solidariedade, por exemplo".

FABIO VICTOR, 44, é repórter especial da Folha. 

domingo, 19 de fevereiro de 2017

31. Meu amigo Doratioto (I)

Durante minha graduação em História, na Universidade Feevale, busquei contatar - pelas redes sociais - o professor Francisco Doratioto ainda sob o impacto da leitura de Maldita Guerra. Para minha satisfação e surpresa Doratioto retornou e durante tres ou quatro anos mantivemos correspondência.  A conclusão do curso e a agenda atribulada do professor  interromperam 'nossa prosa'... mas ela não se encerrou. Apenas começou e uma hora dessas vamos prosseguir.

Nova História da Guerra do Paraguai - 2 de setembro de 2014 
Entrevista, História do Brasil 1 

Entrevista com Francisco Doratioto (UnB) *
Com um trabalho baseado em farta documentação, Francisco Doratioto, professor da Universidade Nacional de Brasília e do Instituto Rio Branco, se tornou um dos principais especialistas em História da Guerra do Paraguai. Mais do que batalhas e personagens, suas pesquisa trazem o lado humano, social e político do conflito. Em 2002, Doratioto lançou pela Companhia das Letras o livro “Maldita Guerra”, que rapidamente se tornou um referência na área, especialmente no que se convencionou chamar de “Nova História da Guerra do Paraguai”. Se você ainda acha que o Brasil foi forçado a fazer a guerra pelo imperialismo britânico ou que o Paraguai era uma ilha de prosperidade que ameaçava ingleses na América do Sul, você vai se surpreender. 

Francisco Doratioto é professor da Universidade de Brasília (UNB).
Foto: acervo pessoal do autor. 
Bruno Leal: Professor, em abril de 1863, no Uruguai, o Partido Colorado, apoiado pelo Brasil Imperial e pela Argentina de Bartolomeu Mitre, se rebelou contra o Partido Blanco, eleito em 1860. Acuados, os blancos, então, foram atrás do apoio de Solano López, presidente do Paraguai. Um ano depois começava a Guerra do Paraguai, conflito que durou seis anos e que neste ano de 2014 completa 150 anos de seu início. Por que o Paraguai (Solano López) apoiou os blancos contra oponentes tão poderosos? Até que ponto esta decisão se deu pela oportunidade do Paraguai conquistar acesso ao mar e/ou pelo medo de um provável desmantelamento das nações menores do Cone Sul, oriundo de uma aliança entre Brasil e Argentina?

Francisco Doratioto: Não se tem certeza sobre a motivação do Francisco Solano López em envolver-se na questão uruguaia; não temos documento escrito ou testemunho que permita dar uma resposta taxativa. No entanto, há uma concordância de que interessava a López a manutenção dos blancos no poder em Montevidéu, de modo a utilizar este porto para o comércio externo paraguaio, de modo a dar continuidade à inserção do Paraguai no comércio internacional iniciada no governo de Carlos Antonio López. Os blancos procuraram, é verdade, convencer López de que a Argentina e o Brasil pretendiam pôr fim à independência do Uruguai, dividindo entre si o território uruguaio e, depois, se voltariam contra o Paraguai. Teria ele acreditado nisso? Possivelmente não, mas com certeza se deu conta que a derrota dos blancos uruguaios fragilizaria o Paraguai frente à Argentina e ao Império, que passariam a atuar coordenadamente no Prata em lugar de rivalizarem-se e isso quando ambos tinham litígio de fronteiras com o país guarani. 

Bruno Leal: Nas décadas de 1960 e 1970, uma certa leitura historiográfica obteve bastante êxito ao explicar a Guerra do Paraguai como fruto imperialismo inglês na região do Cone Sul, como se o Brasil tivesse sido arrastado para a guerra por uma Inglaterra temerosa com o crescimento econômico do Paraguai na região. O senhor é bastante crítico desta teoria, não? Qual foi exatamente o papel da Inglaterra no conflito e porque essa teoria teve e ainda tem tanto sucesso?
Francisco Doratioto: Não sou eu que sou crítico a essa explicação mas, sim, os fatos. Não existe lógica e nem um fiapo de prova nesse sentido. Ademais, não sou o único que afirma isso; outros colegas no Brasil e em outros países também criticam essa explicação. Quanto à Inglaterra, há que se distinguir o seu governo de seus banqueiros. O governo inglês manteve-se neutro no conflito – aliás, foi ele que tornou público o Tratado da Tríplice Aliança, que era secreto -, enquanto seus diplomatas no Rio da Prata eram antipáticos à Solano López, pelas características da ditadura que ele impunha ao Paraguai. Já os banqueiros ingleses fizeram o que todo banqueiro faz: tentaram ganhar dinheiro com a guerra. Assim, emprestaram dinheiro para aqueles governos que tivessem condições de pagar os empréstimos, ou seja, para o Império e para a Argentina, mas não para o Paraguai. Registre-se, porém, que apenas uns 12% dos gastos brasileiros com a guerra foram financiados por esses empréstimos, enquanto o restante foi obtido internamente por meio de impostos, empréstimos, desvio de recursos do orçamento público, etc. 

Bruno Leal: Professor, é bastante conhecida a participação de negros, ex-escravos ou não, na Guerra do Paraguai. Na historiografia sobre o tema, no entanto, parece não haver um consenso quanto ao número de soldados negros na frente de batalha. Como o senhor avalia a participação desse contingente na Guerra do Paraguai? A vitória do exército brasileiro na guerra impactou na forma como o negro ou mesmo a escravidão era vista pelas elites do país?
Francisco Doratioto: A falta de consenso não é somente quanto ao número de soldados negros na guerra, mas quanto ao número de brasileiros que foram para a guerra. Se fala de 100.000 até 150.000; também não sabemos ao certo qual foi o número de mortos brasileiros, com os estudiosos citando algo entre 50.000 e 100.000, uma enormidade se considerarmos que o Império tinha 9.000.000 de habitantes (cerca de um terço da população escrava). O Conde d’Eu elogiou o valor da participação dos “zuavos” na guerra, enquanto Caxias e outros chefes militares, em suas correspondências privadas, criticaram os negros. Suspeito que negros e brancos não se diferenciaram muito: a guerra foi duríssima, as condições do teatro de operações eram terríveis e, a partir do final de 1866, o desalento era geral, independente da cor da pele do soldado brasileiro. 

Bruno Leal: Quando o assunto é Paraguai, fala-se muito na destruição do país após os anos de conflito, desde a destruição completa de cidades até a morte de boa parte de sua população, passando por operações que hoje, talvez, poderia ser classificadas como “crimes de guerra”. O que há de exagero e o que há de real nessas imagens de terra arrasada? 
Francisco Doratioto: Seria um anacronismo falar em “crimes de guerra”. Esse é um conceito desenvolvido no século XX; no século XIX era comum o saque, os abusos contra mulheres e civis em geral, a morte do prisioneiro ou seu uso em trabalho forçado. Os paraguaios saquearam Corumbá e Uruguaiana, perpetraram violências contra os civis e, ainda, contra prisioneiros. As forças brasileiras saquearam Assunção e também fizeram violências prisioneiros e civis. Após 6 anos de guerra o Paraguai ficou, de fato, arrasado. Há polêmica sobre qual seria o número de habitantes do país no pré-guerra, mas há concordância percentual, ou seja, de que o país perdeu mais de metade da população e mais de 2/3 dos homens. No entanto, tal qual ocorreu entre as forças Aliadas, a maior parte da mortandade paraguaia foi causada por doenças ou fome, esta decorrente da migração imposta por López que obrigava a população a ir para o interior do país, na medida em que as forças aliadas avançadas. Era uma política de terra arrasada, ou seja, de esvaziar o território paraguaio de recursos humanos e alimentícios para que os soldados aliados que avançavam não os utilizassem no esforço de guerra. 

Bruno Leal: Embora a guerra tenha terminado em 1870, O Brasil manteve um efetivo de aproximadamente 2 mil soldados no país por seis anos. Esse é um dado que nem todos conhecem. Professor, o senhor pode falar mais um pouco dessa ocupação? Quer dizer, porque um período tão longo? O Paraguai perdeu sua autonomia política neste período? Qual era a missão das forças brasileiras em solo paraguaio no pós-guerra? 
Francisco Doratioto: Entre 1870 e 1876, o Paraguai foi praticamente um protetorado brasileiro. O governo imperial agiu para evitar que se instalasse no país um governo que fosse composto por homens favoráveis ao fim de sua independência, mediante a incorporação à Argentina. Os governantes brasileiros estavam convencidos de que esse era o plano do governo argentino e nesse período agiu para conter a influência argentina no Paraguai. Além de uma eficiente ação diplomática nesse sentido, o Império se respaldava em uma Divisão de Ocupação, aquartelada a poucos quilômetros de Assunção. Para o governo imperial essa tropa, um instrumento de manter a ordem política em Assunção, favorável ao Brasil, e, ainda, para impedir uma eventual ação sustentada pela Argentina no sentido de impor pela força um governo paraguaio com homens que fossem favoráveis a ela. 

Bruno Leal: Geralmente, conflitos contra países estrangeiros produzem sentimentos nacionalistas, criam comunidades imaginadas, enfim, geram sentimentos de unidade. A Guerra do Paraguai gerou esse tipo de sentimento no Brasil? 
Francisco Doratioto: Não vejo que isso tenha ocorrido de forma significativa, inclusive porque a guerra tornou-se impopular e, a partir de 1868, todos eram favoráveis a uma solução negociada, inclusive Caxias. No entanto, Pedro II exigiu que a guerra terminasse somente quando fosse cumprido o que estabelecia o Tratado da Tríplice Aliança, ou seja, a saída de Solano López do poder. 


Bruno Leal: Professor, quais eram as principais leituras historiográficas sobre a Guerra do Paraguai quando o senhor começou a pesquisar o tema? Em que medida os seus trabalhos divergem destas leituras? 
Francisco Doratioto: Na realidade, minha única leitura era a que eu tinha feito no curso de graduação em História, no final dos anos 1970: a guerra tinha sido causada pelo imperialismo britânico e Brasil e Argentina tinham sido marionetes dos interesses ingleses. Eu dei aula no 2º. Grau, em São Paulo, apresentando essa explicação! Posteriormente, fui fazer meu Mestrado na Universidade de Brasília e o tema que propus inicialmente era sobre as relações entre o Brasil e o Paraguai no pós-guerra pois, pensava eu então, o que ocorrera na guerra já se sabia. No entanto, ao ir às fontes primárias (documentação diplomática brasileira e argentina) percebi que eu tinha de entender qual tinha sido o relacionamento entre Brasil e Argentina durante a guerra, para poder compreender a origem e a lógica da disputa entre os dois países pela influência sobre o Paraguai no pós-guerra. Fui, então, ler a documentação sobre a guerra e seu contexto e ela desmentia o que revisionismo brasileiro afirmava, quer quanto ao suposto imperialismo inglês, quer quanto à leitura maniqueísta de que Francisco Solano López tinha sido um governante progressista, quase socialista, vítima de seus dois poderosos vizinhos. Esse revisionismo, em sua versão mais maniqueísta, apresenta a guerra quase como uma disputa entre um “mocinho”, López, e bandidos, a Argentina e o Brasil. 

Bruno Leal: Em geral, conhecemos o que a produção historiográfica brasileira produz sobre a Guerra do Paraguai. Como o tema é tratado, de uma forma geral, atualmente, pela historiografia de países como Argentina, Uruguai e Paraguai? Há grandes diferenças de abordagem em comparação com o Brasil? 
Francisco Doratioto: No Brasil, no meio acadêmico, há consenso entre historiadores que se dedicam ao estudo da guerra de que suas origens se encontram no próprio processo histórico regional e não no imperialismo inglês. Na Argentina, no Uruguai e no Paraguai essa interpretação também está presente entre os maiores estudiosos do conflito, mas há personagens influentes, nem sempre historiadores, que persistem na explicação imperialista. Para tanto há, inclusive, motivos políticos, como é o caso do governo argentino que estimula a interpretação revisionista por ser antiliberal quando o peronismo também o é. O mesmo ocorre no Paraguai, onde a mistificação da figura de López, de sua ditadura e de seu papel na guerra, tornou-se ideologia oficial da ditadura de Alfredo Stroessner. Um ditador buscou legitimidade em outro… A redemocratização paraguaia alterou um pouco essa situação, mas, afinal, Solano López foi construído como herói nacional nos governos de três militares: Rafael Franco, em 1936; Higino Morínigo (1941-1948) e Alfredo Stroessner (1954-1989). 

Bruno Leal: Professor, sabemos que há uma defasagem significativa entre aquilo que é produzido em âmbito acadêmico e aquilo que está nas salas de aula. Que leituras tradicionalistas ou já questionadas por pesquisas acadêmicas sobre a Guerra do Paraguai ainda sobrevivem no ensino de História? Francisco Doratioto: Não tenho acompanhado diretamente essa questão; sei dela por meio de meus ex-estudantes, que hoje são professores, e alunos que fazem estágio nas escolas de primeiro e segundo grau. Noto que há, crescentemente, o abandono da explicação imperialista e um ou outro livro didático que ainda a sustenta. Na realidade, há uma grande defasagem cronológica do que é produzido pela historiografia acadêmica ser incorporado no ensino fundamental e secundário. Em parte isso se explica pela dificuldade que o professor desses níveis de ensino tem para atualizar-se. Esse professor é um verdadeiro herói, pois para sobreviver tem de dar uma enormidade quantidade de aulas semanais, não lhe restando tempo para fazer cursos de atualização ou recursos financeiros para comprar livros com os avanços historiográficos. Vejo, porém, que as novas gerações de professores já tiveram acesso, nas Universidades, a esses avanços e, mais, estes já estão incorporados no conteúdo dos vestibulares em todo o país. 

 Bruno Leal: Ano passado, o Museu Imperial, em Petrópolis, região serrada do Rio de Janeiro, fez um levantamento de mais de 3 mil documentos sobre a Guerra do Paraguai, muitos dos quais desconhecidos por boa parte dos historiadores. Entre o material, por exemplo, estão várias cartas de Solano López e um diário do Conde d’Eu. Professor, em que medida essa documentação pode acrescentar ou até mesmo mudar nossos conhecimentos sobre a História do conflito? 
Francisco Doratioto: Toda documentação inédita e, mesmo, a releitura daquela já pesquisada pode trazer novas informações e, portanto, ampliar nosso conhecimento sobre a História da Guerra do Paraguai. Há vários aspectos dela a serem melhor estudados: estatísticos; financeiros; tecnologia do armamento empregado; processos decisórios; o papel dos negros, dos índios; questões de gênero, etc. Acredito que a nova geração de historiadores que hoje está fazendo Mestrado ou Doutorado produzirão trabalhos que avançarão no conhecimento sobre a guerra. Veja bem que utilizo a palavra “avançarão”, ou seja, não retornaremos à explicação imperialista e, menos ainda, à explicação “patriótica” que havia predominado antes. No entanto, por questão de justiça, quero ressaltar que mesmo no início do século XX, tivemos trabalhos muito cuidadosos sobre o tema como, por exemplo, o admirável “História da Guerra entre a Tríplice Aliança e o Paraguai”, do general Tasso Fragoso, ou as memórias do barão de Jaceguai. 

Bruno Leal: E sobre a polêmica envolvendo a desclassificação de documentos sigilosos no Brasil sobre a Guerra do Paraguai? O senhor acha que medidas como essas são diplomaticamente delicadas ou deve-se mesmo tornar acessível todo tipo de material sobre a questão? 
Francisco Doratioto: Essa é uma “lenda urbana”. Não existe um arquivo secreto “Guerra do Paraguai” no Arquivo Histórico do Itamaraty, mas isso é afirmado e reafirmado por aqueles que não são estudiosos do assunto. De todo modo, como historiador e cidadão sou favorável ao acesso a todos os documentos públicos, exceto aqueles que tratam de assuntos do presente que podem ocasionar graves danos à sociedade brasileira. É normal que seja sigilosa por algum tempo a documentação diplomática e aquelas referentes a negociações econômicas internacionais e à segurança do país. Nossa Lei de Acesso à Informação não encontra equivalente nos países vizinhos. 

Bruno Leal: Professor, chegamos ao fim de nossa conversa. Para finalizar, voltemos a um dos motivos que nos motivou a procura-lo para a conversa: os 150 anos da Guerra do Paraguai. Que eventos importantes a respeito ocorreram ou ainda vão ocorrer este ano, tanto no âmbito acadêmico quanto fora dele? Como o senhor avalia esse momento de lembrança? A historiografia ainda pode revelar muito mais coisas sobre a guerra? 
Francisco Doratioto: Há vários seminários sendo feitos no Brasil e a TV Escola, do MEC, apresentou um excelente documentário, em três episódios, sobre a guerra, com pesquisas realizadas em todos os países envolvidos na guerra. Sei que também está sendo produzido um documentário sobre o tema para o History Channel. Este momento e os próximos anos, até 2020, quando então teremos os 150 anos do fim da guerra, devem ser motivo de reflexão e de encontro dos países que participaram da guerra. Penso no que ocorreu na Europa, onde Alemanha e França preocuparam-se em entender a I e da II Guerra Mundial a partir da metodologia histórica e não de um nacionalismo pernicioso, mostrando o sofrimento de suas populações e seus soldados e as consequências dessas guerras. Essa postura favoreceu a integração europeia, a construção de um espaço de paz em um continente que, até então, vivenciara guerras seguidas desde a criação do Estado Nação. Também para nós, na América Meridional, a Guerra do Paraguai deve ser motivo de reflexão que permita-nos superar preconceitos e avançar no processo de conhecimento mútuo e de integração regional.

Francisco Doratioto possui graduação em História pela Universidade de São Paulo (1979), graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (1982), mestrado em História pela Universidade de Brasília (1988) e doutorado em História pela Universidade de Brasília (1997). É Professor Adjunto, de História da América, no Departamento de História da Universidade de Brasília; atua no programa de Pós-Graduação em História da mesma instituição e leciona História das Relações Internacionais do Brasil e História da América do Sul no curso de formação de diplomatas do Instituto Rio Branco (Ministério das Relações Exteriores). Trabalha com História do Rio da Prata; História das Relações Internacionais do Brasil, com ênfase nas relações com os países da América Meridional, e com História Militar do Brasil. É membro correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; da Academia Paraguaya de la Historia, Paraguai, e da Academia Nacional de la Historia, Argentina, e do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil.

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