João Jorge e Jacobina Maurer

João Jorge e Jacobina Maurer

I m A g E m

I m A g E m
O Velho do Espelho

"Por acaso, surpreendo-me no espelho:
quem é esse que me olha e é
tão mais velho do que eu?
Porém, seu rosto...é cada vez menos estranho...
Meu Deus,Meu Deus...Parece meu velho pai -
que já morreu"! (Mario Quintana)

P E S Q U I S A

quinta-feira, 1 de julho de 2010

22. Um ‘mzungu’ contador de histórias

Ryszard Kapuscinski nasceu em 1932 na Polônia. Graduado em História pela Universidade de Varsóvia foi correspondente de jornais e revistas de seu país na Ásia, América Latina e África. É o autor polonês mais traduzido e publicado no estrangeiro. Ryszard Kapuscinski faleceu em janeiro de 2007, aos 75 anos, após uma longa enfermidade.


Sobre seu livro “Ébano – Minha Vida na África” (Companhia das Letras, 2005) o autor diz não se tratar “de um livro sobre a África, mas sobre algumas pessoas que lá encontrei e com as quais passei algum tempo. Esse continente é grande demais para ser descrito. É um verdadeiro oceano. Um planeta diferente, composto de várias nações, um cosmo múltiplo. Somente por comodidade simplificamos e dizemos África. Na verdade, a não ser pela denominação geográfica, a África não existe”.


Ryszard Kapucinski vai encadeando uma história na outra e vai construindo, defronte dos nossos olhos – como se fosse uma parede de tijolos - uma narrativa humana e vibrante, tão poética que torna-se, em muitos momentos, épica. O autor fala da luminosidade, do calor, das distâncias e das diferenças em relação a noção de tempo.
Em alguns dos capítulos discorre sobre a tragédia da malária, doença que contraiu, no continente africano. Descreve com detalhes a dor e a agonia de alguém atingido pela doença. Narra sua experiência pessoal, igual à de milhares, milhões de africanos. Vale-se desse relato apresentar o Dr. Patel, médico que o atendeu, neto de hindus.
Passa então a descrever o processo de colonização dos europeus no continente. A inexistência de estradas e o temor em relação aos povos hostis e as doenças tropicais fizeram com os que os conquistadores, somente de forma esporádica e a contragosto, se aventurassem no interior do continente. Embora tenham permanecido na costa africana por mais de quatro séculos sempre mantiveram uma atitude de temporariedade, uma preocupação com o lucro fácil e imediato, sem uma visão empresarial de longo prazo.


No final do século XIX, após a Conferência de Berlim, as metrópoles adotaram uma visão mais planificada em relação às colônias. As terras férteis prometiam grandes lucros tanto na cultura do café, chá, algodão e abacaxi quanto com a exploração – noutra região do continente – de diamantes, ouro e cobre. Mas para que isso se efetivasse eram necessários meios de transporte. A construção de estradas, ferrovias e pontes necessitavam de trabalhadores assalariados que não existiam no continente. Não havia operários brancos, pois os brancos, como senhores, não realizavam trabalho físico. Também não havia operários negros porque as populações locais não tinham noção de dinheiro, conheciam há séculos um sistema de comércio baseado nas trocas, e não adaptariam-se ao trabalho remunerado. Foi aí que trouxeram de outra grande colônia britânica – a Índia – os trabalhadores hindus. Dessa forma o avô do Dr. Patel chegou ao Quênia e depois veio para Uganda onde se estabeleceu.



O Dr. Patel contou que à medida que os trabalhadores hindus e outros foram se afastando do litoral um novo horror abateu-se sobre eles: o ataque dos leões. Narra, a seguir, a saga do animal conhecido como o rei das selvas. O Dr. Patel conta que seus antepassados não portavam armas e que as empresas não lhes davam proteção. Restava aos hindus horrorizados e apavorados, em suas barracas, ouvirem os gritos das vítimas sendo arrastadas e dilaceradas pelos leões que, depois de saciados, sumiam novamente na escuridão.
Noutro relato, mais ameno, o Dr. Patel fala sobre a ganância dos portugueses que comercializavam marfim. Eles insistiam com os nativos que, em função da dificuldade de caçar os elefantes, passassem a trazer as presas dos elefantes mortos naturalmente. A resposta surpreendeu-os: não existiam elefantes mortos, nem cemitérios desses animais. A morte dos elefantes foi um segredo que os africanos ocultaram dos brancos por muito tempo. O elefante era considerado sagrado e sua morte também era sagrada para os nativos. O elefante embora longevo, não é imortal. A morte natural dos elefantes ocorre normalmente ao anoitecer, quando as manadas vêm tomar água nos lagos e rios. As manadas esticam as trombas na água para beber. Os elefantes mais velhos não têm mais força para erguer a tromba. Para beber entram cada vez mais no fundo e seu próprio peso prende-os na lama. Quanto mais se debatem, mais afundam e acabam morrendo afogados. No fundo dos lagos e rios africanos encontram-se os cemitérios dos elefantes, tão cobiçados pelos portugueses.





Após seu restabelecimento o autor retornou a seu apartamento em Dar-es-Salaam, em Tanganica onde voltou a apresentar problemas de saúde e descobre que estava com tuberculose. O longo e doloroso tratamento possibilitou que fizesse amizade com dois africanos que trabalham no posto médico local: Edu e Abdullahi. Fala, então, que nos locais onde o cristianismo e o islamismo não haviam se estabelecido o nome das pessoas era de uma riqueza imensa.
O nome das crianças refletia além de um sentimento poético dos pais um acontecimento importante. Nomes como Manhã Radiosa, Sombra da Acácia ou Uhuru (independência, em suaíli) ou Nyerere (nome de um presidente do país) eram comuns. Com a chegada e o crescimento das religiões monoteístas esse mundo exuberante e variado reduziu-se a poucas dezenas de nomes bíblicos ou do Alcorão. Foi perdendo-se, dessa forma, um grau de identificação do indivíduo com a sua comunidade onde o nome de cada pessoa proclamava algum feito registrado na memória do seu povo.
Conta ainda que ao caminhar sozinho pelos becos dos bairros africanos observava que as crianças fugiam assustadas e chorando. Quando faziam travessuras as mães dessas crianças diziam que o ‘mzungu’ (branco) viria pegá-las para comer.


O autor vivencia a agitação política em várias das jovens nações africanas. Acompanha a derrubada do sultão de Zanzibar e o alastramento da agitação política que atingiu também o Quênia, Tanganica e Uganda. Participa da cobertura jornalística desse período em que toda a África Oriental fervilhava em revoltas e golpes de estado. Mas jamais perdeu a atenção em relação a vida das pessoas comuns do povo nesse momentos tormentosos. Continua falando da exuberância vegetal, perde-se na confusão das trilhas e caminhos não sinalizados, arrisca-se nos encontros acidentais com serpentes, manadas de búfalos e elefantes. Não lamenta o permanente risco de vida das viagens em pequenos aviões ou em frágeis embarcações. Nem as oportunidades em que correu o risco de ser executado pelos pelotões de fuzilamento. Os relatos do autor sobre a vida na África, apresentados na sua obra, são elaborados do ponto de vista do africano comum e retratam quatro décadas de convivência do autor com a realidade africana. O tempo dedicado a leitura de cada página do seu livro é plenamente recompensado. Conhecer a África pelos olhos desse ‘mzungu’ é como banhar-se nas águas de um rio numa tarde escaldante, como provar uma fruta saborosa sentado sob a sombra da árvore ou como sentir o cheiro da terra molhada quando as primeiras gotas de chuva vem beijar a terra ressecada.

FONTE: Trabalho de pesquisa realizado durante o curso de História pela Universidade Feevale
                                                                                                                 
                                                                     Gilnei Andrade